Sometimes

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Sometimes you go 

So you can stay

For as long as it takes

Like eternity

In a second

As a first kiss 

That never happened

Sometimes…

Olhos de Ver

Eu estava voltando de um passeio com a minha filha quando vi a cena. 

A pessoa. O chão. O sangue. 

Vi. Mas não vi. 

Eu estava só voltando do passeio. Faço isso sempre. 

Há uma sequência estabelecida. 

Minha pernas andam, meus pulmões respiram, meus olhos olham. O portão verde da vila, o pequeno corredor se segue. Os jardins. Girassóis, rosas, camélias, copos de leite. Silêncio. Sequência.

Levanto os olhos. Céu azul. Baixo os olhos. As casas, as janelas, as roupas penduradas, uma das vizinhas. A mais velha, mas que tem carinha de criança. Sequência. 

Ela me lembra minha avó materna. Nisso de parecer criança. Me olha com uma expressão de afeto e alegria, sempre. Eu sorrio pra ela de volta, sempre. Boa tarde, boa tarde. Sequência. 

Como está a menina? Muito bem, graças a Deus. Sequência. Não. Não aconteceu dessa vez. Só silêncio. Parei no sorriso. Tem alguma coisa errada aqui. Alguma coisa…

Eu não vejo logo. Vejo. Mas não vejo. Ela está me olhando meio que como sempre. Mas… ela está… sentada no chão. No chão!… Ela devia estar no chão? Acho que não. Tem alguma coisa errada aqui. Alguma coisa…

Meus olhos procuram. E encontram… Sangue. Eu, finalmente, vejo. Corro. 

Ok, ok. Levanta, apoia, leva pra dentro. Dá pra ficar em pé? Ok, ok. Respira. Vai ficar tudo bem. Toma um pouco de água. Isso. Essas coisas acontecem. Vai ficar tudo bem. Eu baixo os olhos… Como eu não vi logo? Vi mas não vi. Como?!… A sequência muda. A lógica tropeça. A previsibilidade falta. É possível ver o que não se espera? O que não está no repertório?… Os olhos de ver não funcionam.

Pra casa… Eu ajudo minha filha a se vestir. Tem uma coisa escrita na blusa. Uma linda, linda frase de amor, em francês. A blusa já tem dois anos. Eu nunca vi a tal frase.

Pego a calça legging. A que é toda florida, que vovó deu. Tem passarinhos ali, no meio das flores… Passarinhos e borboletas. Azuis. Ué?… Como assim?… Não eram só flores?… A calça tem o dobro da idade da blusa. Nunca vi os bichos que voam ali. Nunca. Como pode?…

Terminei esses dias um conto sobre um pássaro azul. Sobre voo. Sobre liberdade. Sobre amor. Sobre descoberta. Sobre… Ver. Não porque eu tenha determinado assim. Porque levantei um dia e inventei um pássaro azul. Não. Porque aconteceu. Porque… Bom… Porque vi o pássaro. E o deixei ter vida em palavras. E então… O pássaro agora existe. E eu o vejo na roupa da minha filha. 

Como eu não o vi antes? Como? 

Os olhos de ver não funcionam.

Preciso sair. Ver o céu. Ver o Douro. Ver a Ponte. Ver o Porto. Ver… Essa rua esteve sempre aqui? Essa frase escrita no muro? Esse rosto pintado na janela? A planta vermelha escorrendo porta acima da casa em ruínas? O choro em versos no poste do cruzamento?… 

Eu abro os olhos. Escolho um ponto. Forte. Fixo. 

Me obedeçam. Me obedeçam. 

Não.

Volto pra casa. Dou com o espelho. Olhos nos olhos. Respiração. Pulso. Espanto. Sentimento. Cegueira.

Flávia…

Me obedeça. Me obedeça. Me obedeça.

Não.

Palavras…. E Mágica

Eu tenho chorado ao escrever.

Quando eu escrevo de verdade. 

O que tem sido cada vez mais frequente.

Contos e crônicas, sim. Roteiros, também. Mas, sobretudo, quando eu estou, apenas, “eu-mesma”. Eu como eu. Sem narrador. Sem personagens. Sem plot. Só… Eu. E-mails, mensagens, journaling. Muito, muito mais, inclusive, nos dois primeiros casos. Suponho que seja porque existe alguém do outro lado. E eu sei disso. 

Palavras são coisas tremendamente poderosas. Palavras com destino? Muito mais ainda. Então eu as escrevo. E aí… Choro. Aquele choro que dói. E surpreende. Porque eu  também penso nessas coisas. Só penso. As mesmas coisas. Penso com clareza, com honestidade, com absoluta transparência mesmo. Mas, nesse caso… As palavras apenas pairando, lá em cima, na minha mente?…Tudo bem. Às vezes algum desconforto, alguma angústia, os olhos meio úmidos aqui e ali. As mesmas palavras escritas? Pra outra pessoa ler?! Me passem a caixa de lenços, my darlings

Nem sei como não me dei conta disso antes. Eu, a pessoa que já fez um bocado de psicanálise. Eu, a comunicadora, a pessoa de teatro, a jornalista, a roteirista, a escritora… Falar e escrever sempre estiveram no centro da minha vida. No entanto… Só agora eu realizo realmente o poder inalienável dessas duas coisas. Talvez porque só agora eu esteja me dispondo, mesmo, a baixar a guarda e levantar as questões, all the way. Ir tocando aqui e ali. Porque é isso que as palavras fazem. Tocam. E se estiver tudo bem ali, ok. Se não… Dói. E como dói. 

Feito você fosse pressionando os dedos na própria pele… Os dedinhos… Tornozelos… Joelhos… Um pouco pro lado… Um pouco pra cima… Ai. Nossa. O que é isso aqui? Você olha e lá está: tremendo hematoma. Onde, onde, onde você trombou que machucou tão fundo e feio?… Onde? Quando? Por que? Importa, realmente? O fato é que dói. Ai, como dói. As palavras vão saindo. As lágrimas vão escorrendo. Parece não haver fim nem pra umas nem pra outras. Que cansaço. Exaustão mesmo. Como se tivesse dado a volta ao mundo correndo. Não consigo mais. Silêncio.

Eu faço um chá quentinho. Ligo um negócio qualquer pra ver. Nem sei direito o que é. Até o sujeito falar em… palavras. Tudo, tudo na vida humana, ele diz, é feito através de palavras. Contratos, promessas, declarações. Amor e desamor. União e ruptura. Guerra e paz. No universo da fantasia, como são feitos os encantamentos e maldições? Com palavras. Elas, sempre elas. A própria matéria-prima da mágica. Não, não só pairando em algum lugar secreto e abstrato, lá dentro da sua cabeça. Não. As palavras no mundo externo e concreto. No papel ou na tela, como desenho, como matéria. Ou faladas, na forma de som. A mágica produzida pela transmutação de um estado ao outro tendo você como veículo, origem e destino. Tudo ao mesmo tempo agora. Haja coração. Coragem. Paciência. Lenços.

Meu chá está esfriando. Eu respiro, respiro… respiro. Tomo mais um golinho. Descanso. Tantas palavras que eu não deixei vir ao mundo pra fazer mágica. Mesmo essas transmutam agora, de todo jeito. Viram lágrimas. Mas outras virão de outros jeitos. Muitas. Todas. Eu juro, palavrinhas, que nunca mais deixo vocês no limbo das coisas não escritas, não faladas, não sentidas. Juro.

Hocus pocus. Abracadabra. Alakazam.

F…

Tem coisas que a gente não entende quando muito jovem.

Coisas feito memória. Tradição. Símbolos.

Minha família tinha o hábito de dar pequenas joias de presente para marcar ocasiões.

Nasce alguém… Joia.

Batizado… Joia.

Quinze anos. Noivado. Casamento. Aniversário de casamento… Joia.

Eu nunca pensava em nada disso.

Não me importava. 

Eu não entendia. 

E… Bom… Parecia meio deslocado de tempo e espaço.

Quem ia usar joia no Rio, na minha geração?

Eu era uma criança. 

O brinco de plástico em forma de picolé, vermelho, da coleguinha de classe, tinha mais apelo pra mim. Não que eu fosse usar. Não podia. Tinha uma alergia feroz. Ainda tenho. Qualquer coisa que não seja ouro (ou aço cirúrgico, descobri recentemente), meu corpo rejeita. Doença de gente rica e fresca, você pode dizer. 

Ironicamente, não sou nem uma coisa nem outra. Muuuuuuito pelo contrário. Eu sou a poster-girl do manual do artista duro e despojado. Tô nem aí pra nada. E quando eu penso em dinheiro eu penso em… Livros. Ou filmes. Ir ao teatro mais vezes. Viajar? Oh yes. Mas bem simples. De trem. De classe econômica.  Ficar em hotel desses que você carrega a própria mala, always. Eu gosto que a cama seja fofa, o banheiro seja limpo, a água seja quente. Mais do que isso?… No, thanks. Detesto. Acho luxo uma coisa tão tediosa. E… sei lá… anti-estética mesmo. Cafona. Over the top. Feito um bolo delicioso que alguém estraga por botar merengue demais por cima.

Enfim… Família. Lembranças. Joias.

Eu não entendia. 

Mas aí… O tempo. O espaço. 

Eu deixei o Rio. Mudei pro Porto. 

Anos, anos e anos. E um oceano inteiro in-between.

Aqui joia não é nada demais. Todo mundo usa. Ou não. Mas não importa. Ninguém acha que vai ter a orelha arrancada por causa de um brinco que nem é realmente “valioso”. A joia volta a ser apenas o que sempre tinha sido: uma lembrança. E eu lembro…

Uso o anel pra passear com meu avô. E o eu vejo botar a joia no meu dedo pela primeira vez, over and over again, toda vez que baixo os olhos pra minha mão direita.

Uso os brincos de aço que minha mãe me trouxe, lembrando que eu gostava deles longos, mas tinha deixado de usar ao me tornar mãe e aí… Passeio com mami. E com a eu-mesma que tinha esquecido na gaveta.

Uso minha correntinha e trabalho com meu pai ao lado. A correntinha e o F – que foi pensado pra ser de Flávia, mas eu faço dele outras palavras. Tantas.

Pai… Sonhei contigo hoje me trazendo meu brinco de brilhantes com a tarraxa consertada. E aí lembrei do F. Não usava há anos. Foi você que me deu, não foi?

Foi, sim, filha. 

F. De filha. Mais uma palavra pra eu usar andando por aí. Ou F de friend, que é o que sou mais, na verdade, de pai, de mãe, de todos. E eu gosto de ser assim. Eu acho que é…. Fundamental. Fabulous. Fun. 

Seu tataravô fez amizade com um ourives cujo apelido era Pulego. E aí…

Meu pai me conta toda a história. Eu sabia do Pulego. Ouvi esse nome muitas vezes quando menina. Mas não sabia o resto. Tão, tão interessante…. Daí vinha o hábito das joias. Como marcadores de memórias. Intocadas pelo tempo. Carregadas de significado.

Eu abro o porta-joias. Escolho uma pessoa e um momento pra passarem o dia de hoje comigo. Do outro lado do Atlântico. O mesmo lado de onde veio o tataravô que começou a história toda. O homem que eu nunca cheguei a conhecer mas que é responsável, em grande parte, pelo cordão no meu pescoço hoje, um século depois.

Tem coisas que a gente não entende quando muito jovem…

Tempo. Tradição. Lembranças.

F…

De família.

Forever.

When you wish…

What will it take, Flávia? 

What will it take?

A dear, dear friend of mine comes to me with this question.

Not in this exact words, but in this very spirit.

She’s lost. Empty of meaning. Full of pain. 

Has no idea what to do. 

She, of all people…

It eludes her, this lack of direction and control.

What will it take, Flávia?

I think about her being so lost, but I go to bed to dream, surprisingly, about my very own maze…

There are these endless corridors… I’m late for something; a lecture, a class, it appears. I’m just… late. And I don’t know where it is. 

Night after night, this dream comes to me. This dream and that song about wishes and stars and fate that I have in a Renato Russo’s album… The one from the Pinocchio movie. Pinocchio, the character whose wish was to become… only…human.

“When you wish upon a star, doesn’t matter who you are”…

I go about my day. I work, I write, I go everywhere. 

At night, once again, thinking about my friend’s dilemma, I go to bed. But I dream about myself. Back into that place where I cannot get to a lecture on time. I ask a classmate, she tells me. Makes no difference. I cannot find it, yet again. 

I wake up, make my coffee… Renato Russo’s voice fills the room… 

“If your heart is in your dream, no request is too extreme”.

My beloved friend sends me another message.

So sorry, she can’t even talk. Doesn’t know what to say. Will take a trip soon. Maybe that will do the trick. 

After all, what can it take?…

Yes, Flávia… What?

For how many nights has this been going on? Four? Five?…

The dreams are not bad. At all. Not frightening or tense. They just… are. And at this point in my life I already know we are always suppose to mind the things that come to existence and show themselves to us, so plainly. Specially when they are so damn persistent. They mean to say something. To guide you through the endless corridors.

“Like a boat out of the blue, fate steps in and pulls you through”…

I come back home. It’s raining. I cannot focus. So I play the song.

And think about my friend.

The corridors.

The dreams.

The realities.

What does it take?

When the corridors are never-ending, and the lessons keep passing you by?… 

What does it take?

The piano and voice come in, beautifully…. “When you wish”… Wish what, Renato?… What did you think about when you sang these words?…

Renato Russo, the Brazilian singer with the deepest, most beautiful voice, who recorded this song, died very young. And people say, of such humans, that they live too shortly… But… Do they?… 

Time feels different, after all, when you are fully awake, when you know your way around corridors… 

I sit back down to work. 

He keeps singing to me…

“Fate is kind. She brings to those who love, the sweet fulfilment of their secret longings…Like a boat…”

What? Sorry… I don’t quite get it, just yet…

Is this supposed to be about Pinocchio? 

Come to think of it, was this really a good song for that story?…

Does it make sense that someone would wish so much to be… human?

I pause. I breathe. I write.

I cannot know anything unless my fingers go out of my control – so that they can know it for me. 

I surrender. I let them do their thing. 

They will tell me stuff I don’t really want to know… But what else is there to do?

I once wished to be human…

And now, it’s done.

Renato’s voice comes back around. Once again.

“When your heart is in your dream…

No request is too extreme…

When you wish…

It comes true.”

What will it take, Flávia?

What?…

Nos Caminhos da Vida… O Destino

Você acredita em encontros do destino?

Eu também não. Veja bem… Exceto que… Sim, acredito!

I mean, não acredito… Mas o negócio segue me acontecendo. Então sou obrigada a reconhecer o “fenômeno”. E hoje eu queria contar um desses. Talvez o mais poderoso, evidente e… bom… life changing que me aconteceu. Ele… Ela atende pelo nome de Claudia Giudice.

Pense uma pessoa que ronda a sua existência por anos e anos até vocês se encontrarem de fato e ficarem amigas praticamente de imediato. Aquela coisa estranha de parecer que você sempre conheceu a pessoa… Foi isso.

Mil anos atrás, minha filha bem pequena, eu estava numa sala de espera pediátrica qualquer e abri uma revista dessas mega famosas… Eu nem gostava da revista. Mas abri. E resolvi ler o editorial. Coisa que também nunca faço. Mas fiz. Achei legal, bem escrito, simpático. Tinha uma certa “energia” ali… Hum… A foto da editora da revista ficava logo ali do lado. Era a Claudia. Olhei e pensei: “nossa, ela parece tão legal…”

Passou tempo. Um bocado.

E aí, num outro belo dia, estava eu cozinhando no meu apartamento na Tijuca, Rio de Janeiro. A televisão ligada na sala. Eu ouvia, sem grande atenção, à distância. De repente, me deu um troço. Alguma coisa capturou meus ouvidos… Estava no GNT, o programa era o Saia Justa, uma delas (acho que era a Astrid…) apresentava o próximo assunto, o lançamento de um livro chamado “A Vida Sem Crachá”. A voz da autora do livro entrou… Era… a Claudia. Saí correndo da cozinha, com as mãos sujas de farinha, só pra ver a conversa. Fiquei naquela de… Hum… Eu já não conheço ela de algum lugar?… Ah… É a editora simpática daquela revista… Ah tá. Ok. Fiquei ali, assistindo até o final. 

Passou mais tempo. Alguns anos, na verdade… E a minha vida estava começando a tomar rumos diferentes. Eu tinha voltado a escrever, voltado ao mundo do teatro (via dramaturgia), voltado pra…mim mesma. Ou ao menos, estava no caminho disso. E agora eu estava escrevendo roteiros, querendo sair do Brasil pra um mestrado nisso, na verdade. Lembrei de uma moça, a Candy (Saavedra), que eu tinha conhecido num curso  de dramaturgia (outros encontros “do destino” nesse grupo, aliás…) e que era produtora de cinema. Procurei por ela só pra uns feedbacks de roteiros que eu tinha escrito. 

Long story short: ela curtiu meus textos e me disse que tinha ideia de produzir (e talvez dirigir) um primeiro longa, ela mesma. Se eu estaria interessada em escrever o roteiro pra ela. Ela tinha duas ideias. Uma seria uma BioPic de uma mega estrela brasileira (que não vou contar porque não é assunto meu, então não posso entregar), a outra era a história de uma jornalista, contada num livro chamado “A Vida Sem Crachá”. 

Me bateu aquele troço de novo. Eu já não conheço essa pessoa?… 

“Candy, você tem um pdf do livro aí? Manda!”

Ela mandou. Abri na hora! Li as cinco primeiras páginas e mandei um e-mail de volta: esse é o filme que eu quero escrever! Eu sei quem ela é! Eu sei o que ela sente! 

Foi AS-SIM. 

O livro inteirinho? Li de um dia pro outro. Eu não conseguia largar o negócio. Foi a narrativa mais visceral, honesta e pulsante sobre uma mudança radical de trajetória de vida – trabalho, dinheiro, estilo de vida, identidade, sobretudo… – que eu já tinha lido. E continua sendo. 

Terminada a leitura, percebi que, claro, eu não tinha ali tudo o que eu precisava pra construir o roteiro. Candy nos apresentou, então, via e-mail. Foi aquela coisa “oi, oi, muito prazer, igualmente, posso mandar umas perguntas, claro que pode…”. Beleza… Ali pelo terceiro e-mail eu sabia que seríamos “friends for life”! Como é possível isso? Não sei. Mas foi isso aí mesmo.

Durante algumas semanas escrevemos uma pra outra praticamente todos os dias – em alguns dias, mais de uma vez… De início, os assuntos eram coisas da vida dela que eu precisava saber pro filme. Mas eu contava minha vida de volta, também… Foi a coisa mais estranha porque eu absolutamente NUNCA tinha me aberto daquele jeito com alguém que nem tinha visto de perto ou falado pelo telefone. Nada. Palavras escritas em e-mails, apenas. Não fazia sentido nenhum. No entanto, estava acontecendo… 

O resto é história. Isso foi em 2017. Cá estamos em 2022 e seguimos amigas. Eu nunca consigo deixar passar muito mais do que uma ou duas semanas sem dar um alô, pedir notícias, mandar um beijo – e vice-versa. Nesse meio tempo, já fizemos mil e uma video-chamadas, pequenos trabalhos, um café, em pessoa, no Rio – sim, a gente conseguiu se abraçar de verdade UMA vez! Eu fiquei na ponta dos pés. A mulher é alta! E linda. E poderosa! 

Recentemente, mais um pequeno capítulo nessa amizade pré-destinada. Meu livro, “Batismo”, ganhou segunda edição e eu convidei ela pra escrever a orelha nova. Eu queria ter chamado ela na primeira, mas eu ainda estava escrevendo o roteiro da vida dela e também… achei que a gente não tinha intimidade pra isso. Ela me disse que eu fui uma tremenda pateta! Pra variar, ela tem toda a razão!

E nesse intricado labirinto do destino, que ficou dando voltas pra lá e pra cá, seguimos caminhando. Eu agora estou no Porto, em Portugal. Ela está na Bahia, Brasil, com a belíssima pousada dela e da Nil Pereira (sócia e amiga da Claudia) A Capela, e mais mil e um projetos e agitos – que é a característica da vida dela. Porque quem tem balacobaco tem né, queridos?… 

Da minha parte, nossa… Muita sorte de ter feito essa amizade absolutamente “sem sentido”. Porque aquilo me ensinou a começar a ficar com a “cintura menos dura” como a Claudia gosta de dizer. Ela foi a primeira coisa que eu deixei entrar na minha vida por total e absoluta intuição. Gostei dela por nada. Confiei por gut feeling. Quebrei minha regra de “não trabalho com amigos” porque ela me disse que era bobagem… E por aí foi. 

Muita, muita coisa que passei a arriscar (sem jamais me arrepender) na vida foi totalmente por influência dela. E agora, de quebra, ela faz parte, oficialmente, da minha vida de escritora – como eu espero fazer da dela através da tela grande… Porque o “Vida Sem Crachá”, filme, ainda não aconteceu, mas vai! Eu sei! Um dia… Já o livro… Bom… Está no mundo. E eu acho um absurdo se você não for correr pra ler agora! Confia em mim. Pode ser uma dessas coisas… do destino.

Claudia, thank you for everything! Love you.

Encontros… É Tudo Sobre Química

Eu tive uma noite brutal de insônia hoje… Acordei de hora em hora, se tanto. O mesmo sonho, cheio de imagens intensas, indo e vindo… Entre uma coisa e outra, blocos inteiros de texto… 

Química. É tudo sobre química. Era assim, o começo. Meu pai, sentado na varanda do sítio da família, aos 35 anos de idade, dizia isso. Ele é engenheiro químico, by the way. E naquele Natal, tantos anos atrás, ele me deu de presente essa maleta imensa de … well… coisas de química! Era um kit para crianças. Tinha conjuntos de ímãs, pozinhos, pedrinhas, frascos com líquidos… Tudo para mostrar na prática, de maneira lúdica, como os elementos separados reagem juntos e formam toda uma outra coisa… 

Os ímãs me fascinaram… Tente separar um par deles! Impossible! É preciso manter uma boa distância entre as peças. Se chegar perto… Gruda! Bruscamente. E fica muito difícil de ir um pra cada lado depois. 

Tinha também os líquidos. De cores diferentes. Tudo bem normalzinho e calmo, cada um num frasco. Mas se misturasse?… Explodia! Fazia fumaça! 

E tinha elementos que, juntos, ficavam com a cor mais linda e produziam um cheiro delicioso. Outros, sem odor em separado, juntos faziam um fedor insuportável! E sólidos que viravam líquidos. E líquidos que viravam gasosos. E gasosos que… wellyou get the picture.

Então… I get the message. E enquanto eu não consigo fechar os olhos e descansar, eu procuro o momento em que se deu a reação química que fez essa noite insólita acontecer… Não foi tão difícil de localizar…

Eu estava esperando os avós da Marina acabarem de fazer compras. Um olho lá, um olho cá. Meio passeando mas, sempre, trabalhando. O celular na mão, o tempo todo. Eu pedi licença, fui até um ponto do local onde o Wi-Fi pegava melhor… Uma mensagem entrou. Não era trabalho. Não era esperada. Não era… alguma coisa que eu quisesse lidar, exatamente… Not anymore. 

É tudo sobre química, filha. Química! Ok, Popi, I get it.  But… Do you?… I mean… Você acha que você é só… você mesmo. Não é. Existem muitos, diferentes, “você”. Dependendo do outro “elemento” na situação e a reação química que acontece com cada “par” que se apresenta. 

Com alguns, você é engraçada. Suave. Inspirada. Solar. Honesta. Ou… Ríspida. Nebulosa. Impaciente. Sombria. Mau humorada, even… São muitas as interações. Infinitas as possibilidades. The thing is: quando, e como, e com quem você se torna versões de você mesma que você… ama?… 

Enquanto eu lia minhas mensagens não esperadas, e pensava em responder ou não; e, depois, já respondendo… Assim, de repente, me ocorreu que aquela ali já não era uma “boa química”. Ao menos não pra mim. Não agora. Não no futuro, tampouco, eu suponho. Os elementos já não se comunicam tanto e, mesmo quando sim, produzem alguma coisa que eu, simplesmente, não gosto. Não que seja feio, ou mal cheiroso, ou… destrutivo, per se… Mas é… hum… desinteressante. Insípido. Cansativo. Primário, somehow… 

Nesse caso, o que fazer? Eu preciso mesmo deixar todos os elementos da minha maletinha ficarem se encontrando por aí, de novo e de novo, já sabendo que a reação química não vai ser interessante?… Eu viro pra um lado. Viro pro outro. Não, não vou esquecer o texto. São quatro horas da manhã! 

É tudo sobre química, filha…

Tá, pai. Eu sei. Mas agora, em nome de outra química, a neuro, e tipo… a paz mundial da minha casa e a minha capacidade mínima de fazer o meu trabalho amanhã, será que dá pro “encosto literário” produzir uma reação mais… hum… sonolenta e… for crying out loud… Let me sleep! 

A Fire Tale…

And there I was… Sitting alone, on the floor, with my toy kitchen. I got the little pans, and the teeny-tiny supplies – to make “serious” imaginary food. I opened the fridge. Then the drawers. Finally, the top cabinets. There… surprise-surprise: a match box. A real one. The exact brand I saw everyday in the huge real-life kitchen, in the hands of Mrs. Manuelina, my grandmother’s cook and the only woman I’ve ever called Mrs. in my life, cause she felt like a queen to me… I picked it up. Opened the box. Inside, just ONE single match. Hum… 

Was it real?… Couldn’t be, right? No way… But, if it was… Would I know what to do with it? I had seen Mrs Manuelina, the queen, managing matches all the time. It seemed easy enough. I could just do it. Make that “risk” gesture. Nothing would really come of it, for sure. This was, after all, a toy. It was all imaginary. Nothing to fear, at all. I looked around. Not a single soul anywhere to be seen… I’m all by my self, I thought. Just me, at the powerful heights of my six-year-old self. In one move, I risked it. And…

Oh my God! That thing was real! I screamed. And tossed it over, on the floor, away from me, terrified. Nothing of consequence happened. The lighten match went out on it’s on. I didn’t get burned or anything. But I was seriously frightened by the surprise and the power of IT. IT!!! And a history of attraction-repulsion began. Above all, fear. FEAR in capital letters. That one you know is bigger than reason… I couldn’t do it anymore. I would never, ever, again come anywhere near… IT. I was not about to get burnt. No bloody way. Not ever.

As time went by, “we” had other encounters… And the fear grew at every turn of a corner. I would refuse to get anywhere near it. My heart would start racing if someone would so much as lit a cigarette many steps away from me. Independent as I became with house chores at a very early age, I would never make myself a grilled cheese if there was no one else around to do the IT part for me. I would cry and beg to avoid touching  matches… When I was ten, my mom decided it was time to do something about it. 

“This ends right now”, she said, standing in front of me, in the kitchen, with a match box in hands. “Take it. Do it. I’m right here”. Oh my God, the drama of it. I was shaking like a bamboo stick in the eye of a storm. Shaking and sweating. I could hardly breathe. My sister came in, so did my step father… Gosh, the dogs even came to watch the spectacle of a lifetime! And it was ,definitely, a “show”. A loooong one. But, eventually, I did it. I lit a bloody match. Watched it “on”, for a second. Blew it out, safely. First time was really intense. So, so scary. I felt I was about to have a heart attack. Second time, almost just as bad. Third time… Forth… Fifth… Tenth… Twentieth… Hell, I did the whole damn box! I took it to the living room and did it while watching my favorite tv show. The next day, when my mom came into the house, she found me with a huge pile of used up matches in front of me, in the astray. She shook her head and laughed: 

“Nice, now I’ve created a pyromaniac”…

It was not so, obviously. I mean… There was a certain pleasure in the act… The power, the beauty of it… But, most of all, it was about the thrill of conquering a deep, overwhelming fear I had been carrying with me for so long. I had successfully overcome a big obstacle in my life. It was a “big win”. Yet… I had never really understood that fear until now…

Fears don’t come out of nowhere. Nor do they make sense in the way we usually think they do. Sometimes big, horrible events happen to us and we develop no significant fear over them. I mean, how many times I fell down the stairs, or hit my head playing ball, or cut myself with a knife? And yet… I never feared stairs, or balls or sharp objects. 

On the other hand, years later, I would develop a close-to-phobia-fear of lions (mind you, I never came anywhere near to the king of the jungle… cause… right?… Who has? We’re not in ancient Rome, after all) that included repetitive nightmares, for years. It got so bad, at one point I couldn’t stay very long in a room if there was a picture of a lion nearby… And since we’re talking animals, don’t even get me started on horses…

But, back to the original fear of my life… That thing… IT. But when and where did it start, anyways? For many years, I thought it did at that moment, with the toy kitchen. It wasn’t the case… As any other fear, that one really began with… myself. I never really feared the thing itself. I feared what it MEANS. 

Fire is the first and ultimate power of life. It is also the major force of destruction. It’s beautiful and mesmerising. Dangerous and deadly. It’s golden and bright, it turns things into dark ashes. It makes us warm and comfortable. It burns and kills us. It is a symbol of genius, victory, passion. It is the image of terror, punishment, death. The thing that can never be just one or the other. It is all of it and that’s the only way you may… you MUST take it, embrace it, be MADE by it.

As I begin this new year, of 2022, and I contemplate the road ahead of me, the woman I’ve become; I look back, for a moment, at that girl, who kind of knew that match was real and risked it anyway… And then there was… There is… IT. FIRE.

Presente de Natal

O que você pediu de presente ao Papai Noel? Não responda logo, de pronto, no automático. Uma mentira vai sair pela sua boca. Uma mentira do pior tipo. Aquela na qual você mesmo acredita, porque faz parte de você, tão intimamente. 

Você vai dizer que Papai Noel é das crianças. Uma linda fantasia, a magia da infância, o momento da vida onde tudo era possível. Ah, como era bom ser criança…

Mentiras, quantas, quantas mentiras dependuradas pra todo lado. Não caberiam na minha ex-árvore de natal, na minha ex-casa, na minha ex-cidade, na minha ex-vida. Hell, não caberia também na árvore da casa da família, quando eu era pequena, maior ainda e com mais penduricalhos falsos. Falsos, mas belíssimos. Belíssimos, mas quebráveis. Once upon a time, a fantasia era mais elaborada, a casa era maior, a família era mais unida, os enfeites eram de vidro.

Eu volto para a minha infância… Eu, minha irmã, meus avós, as tias, os primos, em volta da árvore que ia up and up até o teto que, por sua vez, parecia ir até o infinito; o cheiro de pinheiro, madeira e surpresas felizes (às vezes não, mas a gente sempre torcia…) embrulhadas em pilhas de papéis multi-coloridos, com laçarotes vermelhos. 

Com muito cuidado, vovó dizia, me passe mais uma bola. A grande; a média; não,  não, a pequena, agora. Aquele outro enfeite em formato de pingente ou, como eu via, de brinco de princesa. Vermelho cereja. Verde-esmeralda. Amarelo-ouro. E o meu favorito: azul. Que azul era aquele? Céu?… Bom, seria se o céu fosse criado por mim. O mais lindo de todos os azuis…

Decoração feita, algumas bolas destruídas, o cheiro de rabanada e bolinho de bacalhau no ar, horas e horas brincando de ajudar o meu avô a quebrar nozes, mesa posta, filme antigo de natal passando na televisão, todo mundo falando ao mesmo tempo e ninguém realmente se entendendo, o que, de alguma forma, não importava… Não havia muito mais a fazer além de colocar os sapatinhos na janela, torcer para a carta ter chegado ao polo norte direitinho e ir dormir sabendo que, ao acordar, a mágica teria acontecido e, lá ia estar ele… O presente de natal. Aquele presente. Sabe qual?…

Eu não sei… Eu tento me lembrar de algum presente de Papai Noel que tenha me feito ir às nuvens. Nada me ocorre. Então, ao invés disso, eu tento lembrar em que momento eu deixei de acreditar. Ou, o que é mais complicado: se eu realmente acreditei um dia. Se eu seria capaz de acreditar agora.

Eu faço a pergunta e percebo que a resposta não está na infância. Nem a pergunta, nem Papai Noel. Passados os anos, muita coisa mudou. A família já não é tão unida, o bolinho é comprado pronto, a rabanada é light, de forno, o panetone se parece com tudo menos panetone, o pinheiro não tem o mesmo cheiro, as bolas são de plástico, para não quebrar, a pilha de presentes é o amigo oculto virtual. Tudo mudou. Mas Papai Noel e o tal presente são os mesmos. E nada poderia ser mais tristemente adulto. 

Oi? Flávia, você bebeu vinho do Porto demais?… What’s wrong with you?! Eu digo o que está errado. Assim como uma história só é tão boa quanto o seu autor, o sonho é determinado por quem o cria. E a humanidade não sabe sonhar. Tudo é tempo, espaço, limite, regra, função. Mais do que qualquer coisa, tudo é transacional. 

Vai escrever a carta ao Papai Noel? Ah, não pode pedir isso ou aquilo, não… De repente… se você der opções ao bom velhinho?… Uma lista de melhor de três?… Os duendes, afinal, tem muito o que fazer… Ah, pediu uma coisa razoável? Ok. Mas ainda assim, tenha muito cuidado. Papai Noel não presenteia criança que repete o ano, que faz malcriação, que bate no irmãzinho, que desobedece a mãe, que mente… Ah, as mentiras… Elas e os penduricalhos de árvore que já nem quebram mais. São resistentes mesmo. Imutáveis. Ficam ali – entra ano, sai ano. Nada que se possa fazer a respeito. Já não são tão bonitos assim, já não te fazem pensar no céu imaginário ou em princesas encantadas mas, ó, são “razoáveis”. E o que mais se pode querer nessa vida?…

Nada. Não se pode querer nada. Não sem uma lista infindável de qualificações. Você pode comprar o vestido lindo. Se você tiver trabalhado horrivelmente e odiado cada segundo. Porque, né… Coisa engrandecedora ao ser humano é odiar a própria vida. Vale uma pilha gigante de presentes, isso aí. Então sofra. Muito. Talvez, talvez… Se você sofrer muito mesmo, isso te dê direito a um vestido e um par de sapatos. Confortáveis e… Beges. Não vá me sonhar com os sapatos vermelho-cintilantes da Dorothy de “O Mágico de Oz” . Coisa mais infantil e despropositada… 

Ah, você não quer nada material? Você é um ser de luz que quer amor?… Joia. Mas não sem antes justificar pra si mesmo, os amigos, o analista e o teto do seu quarto que você merece amar e ser amado porque, afinal, você é boa pessoa e sofre taaaaaanto nessa vida. Amor. Ele vai vir. Em troca de mil anos de dor e uma Bahia de Guanabara de lágrimas, mas quem está contando?…

Nem amor você quer? Você é uma pessoa mesmo muito básica. Você só quer ser feliz nesse momento. Ter um natal alegre. Dar umas risadas com a família. Sorry. No. O mundo está acabando, tem uma pandemia rolando, muita gente morreu esse ano, o governo está destruindo os seu país… Como assim, ser feliz nesse natal? Tenha bom senso. Vamos fazer as contas disso aí. Colocar tudo na cartinha. Papai Noel que diga se você pode ou não ter ou ser ou sentir o que quer que seja.

Eu respiro fundo. Olho pela janela. E de volta pra tela do computador. E de volta para a janela. Estou tão, tão, tão longe. Da Bahia de Guanabara. Da falação desconexa da família. Da árvore que vai até o infinito. Do meu avô que agora só quebra as nozes em algum outro plano de existência. Não, eu nunca acreditei em Papai Noel. Antes. E eu nunca pedi o que eu queria. As coisas que eu realmente queria, em segredo.

Querido Papai Noel, neste Natal e para sempre, eu quero…

As coisas que não podem ser quebradas. Não por serem feitas de plástico. Absolutamente. Por serem feitas de… Nada. Poeira de estrela. Poeira de mim mesma, talvez… As coisas que são feitas em algum lugar entre o céu e a terra, um lugar meu, onde o tempo é abstrato,  os meus afetos não precisam de selo de aprovação, os sonhos não são classificáveis e a alegria de viver, ou não, está sempre aqui só porque… sim. Porque sim. Porque nada real faz sentido. Ao menos não o sentido que tentamos, em vão, impor. Sorrir em meio aos escombros acontece. Chorar no ápice da glória, também. Essa, a mágica que existe em nós, seres humanos.

As horas passam. Eu pego no sono. Os sapatos não estão na janela. A carta não foi enviada ao Polo Norte. Eu não preciso pedir ao Papai Noel… O presente sempre esteve aqui.

A Cidade De Um Sapato Só

Eu andava pelas ruas do Rio. Falava com elas. Elas, comigo. Coisas, muitas coisas. Coisas de olhar pra frente, pra trás, pra cima… Eu gostava sempre, muito, de olhar pra cima ou pra coisas que fossem… Lá. Lá, o alto, o céu, o infinito. Porque de lá, sim, alguma chance de ver o aqui como se deve. De verdade. Com aquela consciência de poder ser Deus por meio segundo – nem meio humano, propriamente, uma vida inteira. Mesmo assim, valendo a pena olhar… 

Olhei. Vi. Uma coisa tão estranha. Um… Um… Sapato. Ali, na calçada do predinho antigo – charmoso de longe, decadente de perto; lar, de todo jeito. Aquele sapato, ali. Um só. Segui caminho. Permaneci.

Outra esquina, outro sapato. Não o par do que eu tinha visto antes. Não. Outro sapato, totalmente diferente, em tudo mesmo, exceto pelo fato de também estar… Sozinho. Dois quarteirões à frente, de novo. Do outro lado da rua, também. Na pracinha onde eu brincava – os adultos tomando chope, discutindo o jogo do Flamengo. Na beira do Rio Maracanã. Na frente da farmácia triste, fantasma do mais deslumbrante cinema tijucano. Em Botafogo, à entrada lateral da minha antiga faculdade. No Centro, próximo ao cartório onde eu tirava documentos para me mudar…

Eu já não falava com as ruas. O Porto surgindo, à frente; o Rio me escapando, atrás… No alto?… Nem sabia. Uma qualquer coisa. Uma não resolução. Um sapato. Sempre um só. Sempre. Eu tento esquecer. Não posso. No Porto, eu ando por ruas novas. E volto a falar. Numa língua que é a mesma sendo outra, completamente outra.

  Não há, nestas ruas, sapatos sós. Mas eu ainda os vejo. Atrás, em torno, no alto, no Rio… Eu os vejo através do tempo, do espaço, de tudo. Me ocorre que, talvez, seja por isso mesmo. As pessoas todas não vêem as mesmas coisas. A vida, como um filme, em constante foco, desfoco, corte, edição. A lente procurando o que é inevitável ser visto. Porque sim. Porque… Só… Porquê! Eu olho pro alto. De lá para os meus pés, andando no Porto, falando com o Rio. Perdi um sapato! Eu. Eu mesma. Um. Só.

Como foi possível, isso? Como pude, eu, perder UM sapato, assim, no meio da estrada? Perder e seguir andando, como se nada tivesse acontecido?… Então eu não sabia que é insuportável caminhar assim? Um pé protegido, o outro não. Um lado alto, seguro; o outro exposto, mal conseguindo acompanhar. O corpo todo a se mover claudicante, instável, num esforço extenuante onde dez passos se tornam mil quilômetros… Do alto eu me vejo, sem saber. Como Deus, por meio segundo. Meio ser humano, pela vida inteira.

Eu paro. Tiro o sapato que sobrou. Eu, que jamais ando descalça. Mesmo em casa, mesmo no mais limpo dos assoalhos. Não ando. Minha irmã me liga contando ter machucado seriamente os pés. Eu digo a ela, de volta, de pronto:

“Estava descalça, não estava? É nisso que dá…”

É nisso que dá… Eu tiro o sapato assim mesmo. Caminho descalça. Machuco os pés. Seriamente. Machuco mesmo quando não machuco, apenas sinto. Para quem não sentia nada, afinal, qualquer sentido é dor. Ainda assim, melhor; infinitamente melhor do que o arrastar agonizante dos pés que não se falam. Um aqui, outro lá. Um no Porto, um no Rio. 

Eu opto por caminhar descalça. O sapato solitário aguarda. Eu falo com as ruas. Elas, comigo. Muitas, muitas coisas. Coisas de sentir. À frente, atrás, agora, nunca mais, para todo sempre. Coisas de procurar com os olhos fechados. De encontrar no lugar mais insuspeito – mais estupidamente óbvio. A lente que captura, e projeta, o inevitável. O sapato que espera no Porto, o sapato que perdi no Rio…