Olhos de Ver

Eu estava voltando de um passeio com a minha filha quando vi a cena. 

A pessoa. O chão. O sangue. 

Vi. Mas não vi. 

Eu estava só voltando do passeio. Faço isso sempre. 

Há uma sequência estabelecida. 

Minha pernas andam, meus pulmões respiram, meus olhos olham. O portão verde da vila, o pequeno corredor se segue. Os jardins. Girassóis, rosas, camélias, copos de leite. Silêncio. Sequência.

Levanto os olhos. Céu azul. Baixo os olhos. As casas, as janelas, as roupas penduradas, uma das vizinhas. A mais velha, mas que tem carinha de criança. Sequência. 

Ela me lembra minha avó materna. Nisso de parecer criança. Me olha com uma expressão de afeto e alegria, sempre. Eu sorrio pra ela de volta, sempre. Boa tarde, boa tarde. Sequência. 

Como está a menina? Muito bem, graças a Deus. Sequência. Não. Não aconteceu dessa vez. Só silêncio. Parei no sorriso. Tem alguma coisa errada aqui. Alguma coisa…

Eu não vejo logo. Vejo. Mas não vejo. Ela está me olhando meio que como sempre. Mas… ela está… sentada no chão. No chão!… Ela devia estar no chão? Acho que não. Tem alguma coisa errada aqui. Alguma coisa…

Meus olhos procuram. E encontram… Sangue. Eu, finalmente, vejo. Corro. 

Ok, ok. Levanta, apoia, leva pra dentro. Dá pra ficar em pé? Ok, ok. Respira. Vai ficar tudo bem. Toma um pouco de água. Isso. Essas coisas acontecem. Vai ficar tudo bem. Eu baixo os olhos… Como eu não vi logo? Vi mas não vi. Como?!… A sequência muda. A lógica tropeça. A previsibilidade falta. É possível ver o que não se espera? O que não está no repertório?… Os olhos de ver não funcionam.

Pra casa… Eu ajudo minha filha a se vestir. Tem uma coisa escrita na blusa. Uma linda, linda frase de amor, em francês. A blusa já tem dois anos. Eu nunca vi a tal frase.

Pego a calça legging. A que é toda florida, que vovó deu. Tem passarinhos ali, no meio das flores… Passarinhos e borboletas. Azuis. Ué?… Como assim?… Não eram só flores?… A calça tem o dobro da idade da blusa. Nunca vi os bichos que voam ali. Nunca. Como pode?…

Terminei esses dias um conto sobre um pássaro azul. Sobre voo. Sobre liberdade. Sobre amor. Sobre descoberta. Sobre… Ver. Não porque eu tenha determinado assim. Porque levantei um dia e inventei um pássaro azul. Não. Porque aconteceu. Porque… Bom… Porque vi o pássaro. E o deixei ter vida em palavras. E então… O pássaro agora existe. E eu o vejo na roupa da minha filha. 

Como eu não o vi antes? Como? 

Os olhos de ver não funcionam.

Preciso sair. Ver o céu. Ver o Douro. Ver a Ponte. Ver o Porto. Ver… Essa rua esteve sempre aqui? Essa frase escrita no muro? Esse rosto pintado na janela? A planta vermelha escorrendo porta acima da casa em ruínas? O choro em versos no poste do cruzamento?… 

Eu abro os olhos. Escolho um ponto. Forte. Fixo. 

Me obedeçam. Me obedeçam. 

Não.

Volto pra casa. Dou com o espelho. Olhos nos olhos. Respiração. Pulso. Espanto. Sentimento. Cegueira.

Flávia…

Me obedeça. Me obedeça. Me obedeça.

Não.

One Reply to “Olhos de Ver”

  1. Pois é… lembrei de um dito ( ou ditado) antigo: “se fosse um bicho me comia” – quando a gente não “vê” o que está ali, bem na sua frente, mas passa desapercebido, dia após dia…
    Olhar sem ver, os olhos vão para um lado e o pensamento/a cabeça/a sua atenção vai para outro…
    Isso me lembra também o que a Mamãe me dizia quando eu me demorava em atividades domésticas: “Lúcia, sua cabeça pensa muito e sua mão fica parada”… Me lembro disso todos os dias, ou seja, continuo a mesma…
    Olhos que não veem, pensamento versus mãos sem ação…

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *