Gal morreu. A mensagem pulou na tela. Era da minha prima. Mas eu estava falando com outra pessoa. Falando sobre não falar. Não. Isso ia ser depois. Mas já estava pensando. Antes. Agora era sobre um cansaço enorme. Eu não tinha dormido. Falar sobre não falar era meu assunto. Mas minha prima apareceu. Gal morreu.
Oi? Como assim? Falar sobre não falar era coisa de antes, mas ficaria pra depois. Abri o jornal. Ali, a notícia. Sim, Gal morreu… Antes, horas antes. Mais horas, na verdade, porque o fuso me faz dessas… Tenho sempre mais horas antes das horas… E nelas, tinha acabado de ver Gal. Cantando “London London”. Nem sabia por quê. Não importava. Eu estava no YouTube. Cliquei. Parei pra ver e ouvir Gal. “I’m wandering round and round, nowhere to go…”.
Round and round… London london… Falar não falar… A circularidade de todas as coisas me irrita profundamente. E me fascina. É inevitável. É exaustivo. Pra mim, é. Eu, a que teima girar o disco ao contrário já sabendo que estraga a música. A dança. A vida. A coisa toda. Mas mesmo assim. Deixa o disco rodar e tocar direitinho, Flávia. Do início ao fim. Faz favor?…
A campainha toca. Antes. Muito. Quase trinta anos antes. É natal. Minha tia e minha avó. Eu corro pra porta. Ooooooiiiii. Eu não estou igual à Gal Costa? Está! Fiquei toda prosa. Eu, de branco, de alcinha e renda, o cabelão preto que eu tinha passado o dia todo trançando molhado pra soltar tudo depois e fazer aquele onduladão cheio de volume. Eu, a própria Gal. Por uma noite. Era o máximo! Agora faz o batom vermelho também, Flávia. Falta o batom… Não, não… Falta tudo, gente! Gal é Gal. A boca, a voz, o ímpeto, a coragem, o sei lá o quê que a pessoa exala que toma qualquer espaço por inteiro e ainda sai transbordando. Duvido, duvido ela fosse das que gira disco ao contrário. Duvido ela fosse de falar sobre não falar…
“Eu só faço o que eu quero”, eu a vejo dizer no Roda Viva. Antes. Depois. Agora. Tenho certeza que sim. “Ela é tão bonita que, na certa, eles a ressuscitarão”. Gal morreu. Mas eu a quero viva. Pra tudo. Pra todos. Ok… Mais pra mim mesma. Pra me dar umas aulas. Feito só os grandes podem dar. O que ela diria se fosse tipo uma amiga e pudesse me ver agora? Eu dou play. Ela responde. “Sua estupidez não lhe deixar ver”… Touché, Gal. Touché. Estupidez. O disco segue girando. Que coisa linda. Tudo. A arte, essa coisa mágica que toma formas, que parece sempre ser feita só pra nós. Exclusivamente. Sob medida. A arte, que vai te achar no dia certo, na hora exata.
“Você precisa aprender o que eu sei…”. Preciso mesmo. E tem dias que parece que vou. Mas acabo não indo. Não dura. Murcha. Feito meu cabelão cheio de volume “fake”. Feito o batom vermelho que não sei usar.
Play. Deixa o disco tocar, Flávia! Pra frente. Até o final. Play. Gal menina, Gal madura. Cabelo curto, cabelo longo. Vestida, desnuda. Linda, linda, linda. Melódica. Frenética. Alegre. Carnavalesca. Brasil. Tão Brasil. Antes. Agora. Sempre. Vai ter que dar, vai ter que dar. O Balancê, balancê. Entra na roda, morena pra ver. Ao fundo do fim. De volta ao começo. É preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte.
Ai ai… Play. Mais um. E sair pela porta, que tenho hora. Gal e sua aparição me encaram. Antes. Ontem. No cinema, entre os Doces Bárbaros. Do outro lado do mundo. Aqui, no Porto. O filme acaba. Nós aplaudimos. Porque ela está ali. Forte. Doce. Gal. Se ela fosse tipo minha amiga e me visse agora, depois da estupidez, o que ela diria? Play. O último. Antes da coisa que vem antes da coisa, feito todas as coisas são. Circulares. Exaustivas. Perfeitas. Antes. Agora. O que ela diz? Não se afobe não, que nada é pra já. Baby, eu sei que é assim…
Lindo e excelente texto, o que é novidade. Tenho necessidade de repetir o lugar comum, mas que sabe expressar nossos sentimentos. Abraços saudosos.
Muito obrigada, Italo :). Bjinhos.