De Propósito

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A voz de Milton Nascimento invade a casa que ainda não é. O espaço, ao que virá. O caminho de volta, ao que já foi. 

Tudo cheira à morte. Vida. Amor. Sangue. Mistério. Tudo, uma coisa só. Tudo, em opostos inconciliáveis. É preciso separar. Escolher. Eliminar. Absorver. Dessa vez como nunca antes, porque… de propósito. Milton, a voz da eternidade, sabe todas as coisas. Eu não. Não sei. Nada. Menos que nada. Dessa vez, de propósito. 

Faz diferença, isso? Faz. Toda. 

“E assim, chegar e partir são só dois lados da mesma viagem…”

São só dois lados. Sim. 

Faz diferença? Faz. Toda.

Eu me visto. Eu me dispo. As roupas que vão ao chão. As que cobrem uma nudez sem pressa, sem calor, sem frio, sem pudor. Como nunca antes. Um tanto faz específico, intransigente, supremo. O que já não serve é muito e precisa ir. Então, eu separo as roupas. As cartas. Os documentos. O passaporte. 

E penso. Na minha avó. Falando de amor. Antes, muito antes… enquanto eu, agora, silencio o amor em mim mesma. Dessa vez, de propósito. E minha avó, antes?… Ela falava, eu ouvia. Por acidente.

Minha filha, os casamentos já não duram porque todo mundo é independente. Ninguém mais quer aturar nada.

Ela dizia isso como se fosse uma coisa negativa. Pra ela era mesmo, ora.

Minha filha, o problema da sua irmã é ter roupa demais. No meu tempo a gente tinha a roupa de casa, o uniforme da escola, uma roupa de festa. E só.

Minha filha, agora todo mundo faz dieta e vai pra academia. Todo mundo vive com medo de engordar. No meu tempo, a gente tinha que andar, pegar no pesado e não tinha essas facilidades, essas comidas prontas… Você queria um bolo? Tinha que fazer. Pronto. Pesei a mesma coisa minha vida toda. Nunca nem pensei nisso.

Verdade. Ela, sua cinturinha de pilão e suas pernas fabulosas nunca souberam o que era uma bicicleta ergométrica e, definitivamente, nunca ouviram a palavra “pilates”.

Ter escolhas. Esse, o problema. Na ausência de abundância e variedade, a falta de drama. Noves fora, vejamos… Na falta de opções, a “felicidade”. 

Ela dizia isso como se fosse uma coisa positiva. Pra ela era mesmo, ora.

A vida sem opções lhe foi gentil. O amor lhe sorriu. O conforto. A abundância. A boa saúde. A casa. A vida. A cinturinha de pilão e as pernas fabulosas. Por acidente. Tudo, tudo. Até que… Não mais. 

Estou cansada. Não sei como vim parar aqui. Essa casa, esse corpo, essa vida… Nada, eu reconheço. Como?… Ela diz, sem palavras. Provavelmente sem pensamentos, tampouco. Por acidente, tudo chegou. Por acaso, se despediu.

“O trem que chega é o mesmo trem da partida. A hora do encontro é também despedida.  A plataforma dessa estação é a vida…” 

Eu digo essas coisas à minha avó. Ela não me escuta. A conversa acontece na minha memória, por acidente. E nesta semi-ficção, de propósito. Na vida real, frente a frente, nós duas, ainda respirando o ar no mesmo planeta, a conversa acontece?… Não sei. Acredito que não. Há palavras que não devem ser ditas por acidente. Mas silenciadas, por amor. De propósito. 

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