Então 2020 tinha começado. Eu passei a noite de Ano Novo em casa. Milhares de pessoas nas ruas, aqui no Porto. Eu podia ter saído? Podia. Mas escolhi ficar. Não gosto de grandes festas nessa data. Um jantar legal, música, minha ruidosa família em volta, um filme depois da meia-noite, isso tudo eu gosto. Aqui no Porto eu não podia ter algumas dessas coisas. A família está do outro lado do Atlântico. Mas o jantar estava de pé. O filme também. E depois dormir torcendo por um ano melhor. A gente sabe que está fora do controle mas, what the hell, somos humanos. E torcer é de graça.
Logo depois, janeiro. Fiz aniversário. Costumo tirar umas horas, me dou uma sessão de cinema solitária, penso na minha vida. De novo, torço por um período melhor em seguida. Continua sendo de graça e eu, well, continuo sendo humana. Então, naquele 13 de janeiro de 2020 eu fiz basicamente isso tudo aí. Mas, sei lá… eu estava de mau humor. Uma sensação incômoda. E antiga. Tão antiga. Fui caminhando pelo parque gelado. Não é nada. Não é nada. Foca no trabalho. Escreve. Vai passar. Não vai passar. Mas vai passar.
Foi passando. O tempo. A outra coisa não. Sempre lá. Eu comecei a ler com mais frequência nos jornais sobre o vírus novo se espalhando. Pensei no H1N1. De repente vamos ver aquilo de novo e ok. A vida segue. A gente sobrevive.
Fevereiro veio. Comecei a tentar comprar máscaras e álcool gel. Não tinha. Em lugar nenhum mais aqui no Porto. Eu caminhava para os lugares, mesmo na chuva, para evitar transporte coletivo, abria portas com lenço de papel, não deixava ninguém chegar tão perto. Aquela sensação opressora em algum lugar de mim mesma que eu não sei dizer, num quarto escuro do qual nem eu tinha a chave. A vida segue. A gente sobrevive.
Março. Trancada em casa. Febre e dor e cansaço. Olhos fundos, tão tão fundos. Uma pulsação fora de controle. Um medo no escuro. Da doença? Não. Eu nunca achei que ia complicar, muito menos que eu ia morrer. Outra coisa. A coisa no fundo de um corredor em mim, no quarto do qual eu não tinha a chave. Um medo mortal. A doença foi me largando. Trabalho pra fazer, mudança de casa pra lidar, filha pra cuidar, roteiro de filme pra terminar. A vida segue. A gente sobrevive.
Os meses foram todos indo e vindo. Fecha tudo. Abre tudo. Trabalho antigo de volta. Trabalho novo pintando. Vida quase normal. O quarto escuro lá no fundo, olhando pra mim. A chave?… A chave?… Não queria saber. Não tinha importância. Acorda, trabalha, dorme. Acorda, trabalha, dorme. Acorda. Acorda. Acorda!
Sentei na cama. Puxei o ar. Olhei em volta. O tal quarto escuro escancarado bem ali, iluminado e magnificado, de doer nos mil olhos que eu nem tenho, gritando comigo, alto e furioso, inclemente, na minha cara, feito uma bofetada em loop infinito. E tudo tremeu. E tudo veio abaixo. Quanta, quanta coisa trancada ali por tanto tempo. Por todos os tempos.
Onde eu estava enquanto isso acontecia?… Acordando. Dormindo. Trabalhando. Andando no parque. Trabalhando. Dormindo. Dormindo. Dormindo. Até simplesmente não poder dormir mais…
Um ano chamado 2020 veio. E a vida até segue. Mas não há sobreviventes.