Ou Isto Ou Aquilo…

As luzes se acendem no palco. Se apagam na platéia. Eu respiro fundo. Há um cheiro em teatro. Um buzz. Uma coisa qualquer. Eu olho em volta. Espaço lotado. Tanta, tanta gente. Eles também sentem o cheiro? O buzz?… Não. Bastante óbvio que não. Eu também não devia mais sentir. Já não estou lá. Estou aqui. Lá, as crianças… Sorrisos embaraçados, passos trocados, câmeras, flashes. Eu aqui, imóvel. Vinte e um, vinte e dois anos. Que cansaço enorme. Exaustão, mesmo. O cheiro, o buzz, os flashes. Eu, menina, fecho os olhos. Ou isto ou aquilo. Ou isto ou aquilo.

O espetáculo é todo em homenagem a Cecília Meireles, minha prima, a mãe de uma das crianças explica, muito orgulhosa. Ah… eu digo… que lindo. Lindo. Falar sobre coisas feito poesia. Ah, falar sobre essas coisas… Mas não é possível ali – em meio a quem não sente o cheiro de um teatro. O cheiro, o buzz. Não há palavras. Os flashes as engolem, todas. As crianças lá, mas não. Os pais aqui, mas também não. Eu?… Onde eu estaria? Que cansaço. Eu respiro fundo. O cheiro… O buzz… O cheiro. Eu não deveria mais sentir isso. Já não estou lá. Ou isto ou aquilo.

“Quem fica nos ares não fica no chão…”

“Ou guardo o dinheiro ou compro o doce…”

“Ou se tem sol e não se tem chuva…”

Cecília. Grande, enorme, esplendorosa Cecília… Cecília Meireles e seu poema sobre escolhas. Ah, as escolhas… Essas coisas inevitáveis da vida. Saber escolher, sim, uma inescapável parte do crescimento humano. Esta blusa ou aquela? O vermelho ou o azul? O bolo ou o sorvete? Inglês ou francês. Aceitar que é preciso escolher. Saber escolher. Sim… Mas… E o saber NÃO escolher?

Como manejar uma vida entre a platéia e a ribalta? Na penumbra da zona cinzenta onde algumas pessoas existem – não que queiram. Eu, se pudesse, certamente escolheria ter sido um ser de black or white, aqui ou lá, isto ou aquilo… Mas quando, quando há de alguma coisa neste mundo obedecer às minhas vontades? Quando, eu pergunto. Eu, eu mesma, na minha totalidade fragmentada de mil verdades em uma mentira só. Eu, que fui fechando os olhos, sentada naquela platéia, embalada pela musicalidade das palavras de Cecília… Ou isto ou aquilo.  Ou isto ou aquilo. 

Eu penso naquele momento, aquela festa de fim de ano, aquele cair num sono profundo e absolutamente insuspeito… Eu, agora, no dobro exato da idade daquela menina que eu, um dia, fui. Eu, que não estou nem aqui nem lá; ou, antes, que estou aqui E lá. Que sinto o cheiro, e o buzz, e uma coisa qualquer. Que não me espanto, nem me chateio mais, ao perceber os que não sentem. Eu, que nunca me canso. Eu, que sou isto E aquilo E coisa nenhuma. Eu, que só posso estar inteira quando partida em mil pedaços. Eu penso, penso… E procuro por Cecília. Quem era, afinal, esta poeta das escolhas?

Cecília Meireles. Poeta, sim. Mas também professora, jornalista, artista plástica. Teve uma vida pequena, simples, muito solitária em casa, não brincava muito com outras crianças. Teve uma vida enorme, viajou por todo lado, falou várias línguas, conheceu muita gente. Foi solteira, casada, viúva, casada outra vez. Inteligente E respeitada E bonita. Sim, bonita mesmo. Eu achei. Uns olhos lindíssimos. Descritos como?… Azuis-esverdeados ou… verde-azulados! Nem isto nem aquilo. As duas coisas. Olhos lindos. Quem se importa de que cor eram?… Ela mesma, talvez?… É provável. Ao menos por algum tempo, em alguns momentos. Poetas, afinal, também são gente. E, nessa de ser gente, algumas coisas se complicam.

A angústia… Ah, essa terrível angústia da subjetividade, das possibilidades infinitas. Quem suporta uma coisa assim? Apelamos ao pensamento binário. Como já dizia a minha avó, o problema é ter roupa demais no armário. Quando só se tem uma, a solução é automática. Uma de cada. A roupa de casa, a roupa de sair. Bom ou ruim. Certo ou errado. Artista ou jornalista. Brasileira ou expatriada. Solteira ou casada. 

Ou isto ou aquilo. Eu me vejo fechar os olhos e ir dormir. As luzes se apagam no palco, se acendem na plateia. As pessoas se levantam e saem, em blocos. Pra casa ou pro restaurante? Pizza ou sushi? Coca ou Pepsi? Que cansaço… As palavras de poesia ficando pra trás… O cheiro, o buzz, a menina… Eu a deixo ir. Um dia a gente se encontra.  Um dia com chuva E sol. Eles existem.

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