O Medo, A Queda, O Voo…

Eu era pequena. Muito, muito. Naquele tempo que vem antes do tempo em que se sabe que se é pequena. Antes do tempo em que se sabe que se é. O movimento me encantava. Qualquer coisa que significasse sair por aí, trilhar o caminho…

As pernas das pessoas passavam. Eu ficava hipnotizada. Aquelas passadas tão largas e rápidas. Liberdade.

Os patins das meninas deslizavam. Eu ficava hipnotizada. Aquele deslizar em zigue-zague, com tanta graça. Liberdade.

Sobre todas as outras coisas, as bicicletas. Ah, as bicicletas. O maravilhoso milagre do equilíbrio perfeito, as pedaladas sem esforço, o vento, o vento, o vento… Aquilo era voar, eu tinha certeza. Liberdade. Mais, bem mais do que liberdade. A ausência da opressão de tempo e espaço, de ser qualquer coisa de qualquer pessoa. Só estar em movimento, feito um pássaro que não tem pra onde, nem por quê, voltar…

Posso ir? Não. Muito cedo. Tempo de rodinhas. 

Eu odiava as rodinhas. Odiava. Deixava tudo preso. Fazia um barulho enjoado. Era como estar amarrada. Ódio mortal. Mas não era minha vez ainda. Minha irmã mais velha, sim. O vizinho, também. O outro garotinho, do prédio ao lado. Minha prima maior. 

E aí, começou… Joelho ralado, galo na testa, dedo do pé arrebentado, tudo arrebentado! E sangue, sangue, sangue. Lágrimas. Quantas lágrimas. E lá iam eles de novo. E de novo. E de novo. Engolindo seco, perguntei pra minha irmã sobre os acidentes. Ela disse:

“Não tem jeito. Ninguém aprende a andar de bicicleta sem se arrebentar”. 

Recuei. Não dava pra mim não, aquele drama todo. Thanks but no, thanks. Eu podia muito bem viver sem andar de bicicleta, não podia? Podia. Mas não podia. Podia, mas o que fazer com aquela vontade de voar? Podia. Mas o que fazer comigo mesma?…

Uns anos passaram. Eu já estava grande demais. Velha demais. Onze anos! Quem aprende naquela idade? Eu, eu ia. Nem que levasse a vida toda. E a ajuda da minha irmã. Da minha tia. Da minha outra tia. Hoje vai. Não, não vai. Quase foi, mas perdi o equilíbrio. E a coragem. Não sei qual primeiro. Os dois. Quase foi de novo. Estava indo bem. Em linha reta. Mas não sabia fazer curva. Tendo que mudar de rumo, eu caía. E caindo, doía. E doendo, recuava. Eu nunca ia saber fazer aquilo. Nunca. Era simplesmente contra as leis da natureza. Contra as minhas leis, pelo menos, certamente era. Mas, ah, o vento… e aquela sensação de estar quase, quase, quase…

Final de férias. Minha prima maior assumiu o encargo. Uma pequena rua de terra batida, uma pequena ladeira, uma grande vontade de ir e aí… 

Fui! Como? Como aconteceu? O súbito equilíbrio veio de onde? Não sabia. Não importava. Ainda não sei. Importa menos ainda. Eu e a bicicleta éramos uma pessoa só e eu estava voando. Liberdade. Paixão. Obsessão. Não havia horas suficientes naquele primeiro dia para que eu andasse de bicicleta. E subisse a ladeira, e descesse a ladeira. Em alta velocidade. Cada vez mais alta. Feliz, feliz. Mas doeu. Muito. Doeu de pedalar demais, mesmo. Em outras vezes, muitas, doeu porque eu caí. Ralei. Sangrei. E eu ainda tenho um bocado de medo. De vez em quando, eu dou umas recuadas Mas eu sempre  acabo subindo na bicicleta de novo… Voar é preciso. 

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