Fui…

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Homem morre ao jogar o próprio carro de uma ponte que já não existia mais, há anos, guiado pelo GPS.

Essa foi mais ou menos a manchete de uma notícia que li hoje cedo. Não foi a primeira. Não vai ser a última. 

Tem também a história da pessoa que morre fazendo uma selfie de situação encenada.

A moça que se apaixona por um homem que não existe, num site de relacionamentos.

O homem que mantém um caso de amor estritamente virtual, há mais de quinze anos.

A mulher que inventa um negócio fictício on-line (sem golpe financeiro, veja bem… Só pela fantasia mesmo) com direito a reuniões virtuais e contratos assinados via correio. 

Substitutos. Eles sempre existiram. Que ótimo, aliás. Nós, humanos, afinal, somos bem frágeis e patéticos em muita coisa. Mas, boy oh boy, como nós somos bons em nos adaptar. Em criar soluções e “muletas” para contornar adversidades, impedimentos temporários. Em… bom… inventar os tais dos “substitutos”. 

Pense férias de verão no campo, com a família… Nem muito tempo atrás, não. Três, quatro décadas, no máximo. Já tinha um bocado de tecnologia. Luz elétrica, mesmo na roça das roças. Rádio. Televisão. Mesmo assim… 

Fazendo sol, a gente passava o dia fora. Pique-esconde no quintal, corridas de bicicleta pelas ruas de terra batida, caminhadas intermináveis só pra tomar uma casquinha de sorvete ou comprar um gibi, piscina na casa da tia uns quarteirões pra baixo e depois voltar todo mundo pingando água pelo caminho – ou banho de mangueira mesmo quando não tinha piscina nenhuma.

Mesmo à noite, a gente saía. Em grupo. Minha avó, as tias, os primos todos. Um ponto de luz ou outro dos postes, a luz da lua, linda linda… Os vaga-lumes, o cheiro de mato, o barulho dos bichos noturnos e… nossas vozes. Todos juntos, a gente ia conversando, rindo, falando besteira, discutindo também, às vezes. Claro.

Se chovia?… Substitutos. Bem legais. Jogos de cartas. Pipoca. Jogos de tabuleiro. Pipoca.  Adedanha. Pipoca. Pregação de peça nos inocentes. Pipoca. No fim da noite, algum filme do Spielberg daqueles bem apavorantes, que sempre passavam na televisão. E, claro… Pipoca. 

Acabou a luz?! Mais alguns substitutos, com o auxílio de um lampião e algumas velas. A gente até sentia falta da TV, mas o climão, as sombras, o ar de mistério compensavam largamente. De vez em quando era bom! Se tivesse raios e trovões ao fundo, então… Uau. Era como um dos filmes do Spielberg bem ali, na nossa vida real. A gente fazia uma quase uma realidade paralela, viajava na imaginação, criava personagens, aproveitava também pra sonhar com o paquerinha que estava longe e “trabalhar” na trocação de cartas e bilhetes de amor.

A chuva uma hora passava. A noite virava dia, mais uma vez. As férias chegavam ao fim. A fase de paquera fantasiosa e  das cartas evoluía para o dançar juntinho na festa, andar de mãos dadas, pegar um cinema e dar o primeiro beijo no escuro, uns outros tantos no claro mesmo, ficar pendurada no telefone e, um dia, perceber que não era essa coca-cola toda, terminar tudo e ir dormir chorando pra depois acordar pálida e inchada. Jurar que nunca mais. E começar tudo de novo. 

O sol, a chuva. O dia, a noite. O período de aulas, o de férias. O real, o imaginário. O concreto, o substituto. A dança, caótica, sim; mas também harmoniosa, do seu próprio jeito, entre todos os elementos que iam tecendo uma coisa chamada… vida. Sem que precisássemos sequer nos dar conta disso, sem que fosse uma preocupação mas, apenas, um fluxo – onde cada coisa tinha seu lugar e sua hora. Ciclos. Natureza. Multiplicidade. Experiências. Riqueza.

E aí… Alguma coisa aconteceu… Os substitutos, as muletas, os artifícios foram se multiplicando. Ganhando espaço. Muito. Muito. Muito. Demais. A dança… desandou.

Quando foi que a muleta começou a parecer melhor do que as pernas? 

Que sonhar deixou de ser apenas a etapa inicial e virou a história inteira?

Que ser um personagem numa tela tomou o lugar da busca por uma existência completa e plena, no mundo real?

Que o que te diz a voz robótica do GPS te parece mais factível do que o que dizem os seus próprios olhos e sentidos? 

Quando foi, enfim, que abrimos mão de ser matéria e, surprise-surprise, ao fazer isso parecemos ter perdido… o espírito?…

Mãos ao volante, olhos na estrada, meu verdadeiro GPS me dá um alerta… A ponte não existe. Não está lá. Não vai me ligar a coisa nenhuma. 

Não, obrigada. Eu dou meia volta. Desligo tudo. Bato a porta. Estou fora. Minhas pernas, meus olhos, meu coração, meu espírito agradecem. Fui.

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