Com Quem Eu Durmo

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Minha amiga pergunta com quem eu durmo.

Não com essas palavras. 

Não dessa vez.

Mas, às vezes, até assim mesmo. De forma muito direta. Dependendo de quem pergunta.

As pessoas variam em níveis de rejeição a subjetividades. A maioria as evita. Sempre que possível. Parecem sentir que estão perdidas em significado até ouvir coisas mais… digamos… equacionadas. 

Sim. Não. Direita. Esquerda. Solteira. Casada. Meio enrolada.

Não há nada de “mau” nisso, por si só. Em certos momentos da vida, por motivos muito particulares, é preciso algum suporte de “placas sinalizadoras”. O GPS interno pode falhar. Ou, mesmo estando correto, ainda é necessária, por vezes, a confirmação verbal. Porque… bem… vai que o “dono do GPS” resolve falsear os sinais, por alguma razão?…E aí, ainda que sua leitura inicial esteja correta, despencar do penhasco pode ser o resultado final, de todo jeito.

Mas, enfim, peguei um desvio aqui.

Outra coisa que faço com alguma frequência. Segundo um outro amigo. E ele não está , de todo, errado. Apesar de mal interpretar gravemente as motivações das falas derivativas.  Não quero, nunca, fugir a assuntos. Não tenho por quê. Já de penhascos…

Minha amiga pergunta com quem eu durmo.

Não com essas palavras.

Mas essa, a pergunta.

Bom, noite passada eu dormi com meu caderno. Acordei hoje com Kubrick.

No caderno, Drama Queen, meu roteiro de trabalho… Uma viagem pelo meu inconsciente, minha escrita, meu coração, minha história com teatro.

Na tela, 2001, Uma Odisséia No Espaço.

Você dormiu com o caderno? Você ainda usa caderno??? Isso não atrapalha o sono, não? Onde você botou ele?

Sim. Sim. Não, pelo contrário. Debaixo do travesseiro.

Mas… Não é nada disso que importa.

Você está vendo esse filme? Você entende isso aí? Dizem que o livro é bem melhor. Você acha? Melhor?

De novo… Não é isso que importa.

Mas, se importasse, eu também não diria nada.

Palavras, palavras… Kubrick merece mais do que isso de mim.

Flávia, com quem você dorme?

Já não tenho vocabulário pra dizer, mas digo assim mesmo, sabendo que minha  resposta vai cair no silêncio do espaço onde eu vejo a valsa dançar… no lugar de perfeição que só outros sentidos alcançam… 

Não é isso que importa.

Ok, ok. Mas, Flávia… Afinal… Com quem você dorme?

Eu devolvo a pergunta, já antecipando. Nem vou ouvir.

Não se ocupe de me responder com… João. Maria. Pedro. Paulo. Josefa. Pafúncio. Fulana. Cicrana. Fulana e Cicrana. Ao mesmo tempo. Em dias alternados. Só na sua imaginação. Online. Essa forma, muito “em moda” ultimamente, aliás. Ineficazmente, feito tantas outras. Mas, vá lá, tendo uma tela no meio, algumas pessoas acreditam que é diferente. Mais “seguro”, talvez… Humanos…. E ilusões….

Não me responda. Não importa. 

Me importa a outra coisa…

Alguém me pergunta: qual é a outra coisa?…

Well… Eu respiro.

Se preciso responder, a resposta, por certo, não vai ser entendida. O que me leva, mais uma vez, ao porto de partida. E com rima. Não posso, não. Falha de comunicação, se for inevitável, que ao menos tenha senso estético.

São tantas, tantas perguntas.

E muito mais afirmações.

A programação de GPS é implacável.

Eu já fui solteira. Casada. Descasada.

Acha-se programação para tudo isso.

Solteira, jovem? Fase de explorar. Se divertir. Nada sério. 

Está com quem agora? Ninguém? Como pode? Tão jovem, tão bonita. Sim, esses quesitos parecem fazer muita diferença no tal GPS. Segundo quem, não me perguntem. Mas tudo parece importar. A sua vontade?…Not really.

Casou? Sossega. Para todo sempre. Se teve filho então… Casamento é trabalho. Vamos trabalhar nisso aí. Não é preciso perguntar com quem se está dormindo. Mas quantas vezes. O GPS computa isso aí. Aponta direções. Está demais? Cruzes. Não é normal depois de certo tempo. Muito mal e esporadicamente? Nunca? Problema. As pessoas perguntam. As respostas importam. A sua vontade, mesmo?… Not really.

Separou? Puxa, que pena. Bom, acontece… Não durma logo com alguém. Não é legal. Já tem seis meses? Tá na hora. Um ano? Dois? Nossa! Tá esperando o quê? Não é possível, você está sabotando a sua vida amorosa. Escolhendo demais. Ou você não liga a mínima pra nada disso e está mentindo. Você usa Tinder? Por que não? Todo mundo usa. Gente… Aquele seu amigo gato tá dando em cima de você non stop e você não dorme com ele? Por que???

Tantas, tantas perguntas. 

Os fatos, datas e explicações organizadas claramente importam muito. 

A sua vontade?… You know

A amiga se cansa. Melhor mudar de assunto.

Você não está respondendo, Flávia!

Estou. Você é que não está entendendo.

Sr. Kubrick… O sr. pode explicar o 2001?

É possível (ou desejável, mesmo) explicar a Monalisa?

Explicar música?

Explicar sentimento?

Ok…

.

.

Sr. Kubrick, por favor explique.

Oh, Lord…

.

Então…Flávia… Afinal… Com quem você dorme?

Por onde começar, mais uma vez?

Kubrick e a circularidade da valsa, dos planetas, das naves… A circularidade interminável de todas as coisas. A maioria delas, infelizmente, sem beleza ou propósito dignos de alguma nota. Mas eu procuro circular à margem dessas… Sendo parte da existência humana isso de valsar, que seja com poesia.

Oi? Como assim?… 

Flávia, você nunca vai responder direito, não?

Mas eu estou respondendo…

Eu falo a verdade, difusa.

Você quer a mentira, concisa.

Antes a informação falsa, mas inteligível. Ainda que faça o GPS te jogar do penhasco.

O penhasco é palpável, note bem. 

Todo mundo vai entender o penhasco.

Bom… Todo mundo não está na minha cama.

Nos meus sonhos.

No meu caderno.

Na minha tela.

Na minha valsa.

Boa noite, Sr. Kubrick.

Não. Nada a perguntar.

One Reply to “Com Quem Eu Durmo”

  1. Abstrato, concreto, poético, simbólico, misterioso, filosófico, … à primeira vista não sei o que dizer…
    Autor conversando com seu “Eu”…

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