A Cidade De Um Sapato Só

Eu andava pelas ruas do Rio. Falava com elas. Elas, comigo. Coisas, muitas coisas. Coisas de olhar pra frente, pra trás, pra cima… Eu gostava sempre, muito, de olhar pra cima ou pra coisas que fossem… Lá. Lá, o alto, o céu, o infinito. Porque de lá, sim, alguma chance de ver o aqui como se deve. De verdade. Com aquela consciência de poder ser Deus por meio segundo – nem meio humano, propriamente, uma vida inteira. Mesmo assim, valendo a pena olhar… 

Olhei. Vi. Uma coisa tão estranha. Um… Um… Sapato. Ali, na calçada do predinho antigo – charmoso de longe, decadente de perto; lar, de todo jeito. Aquele sapato, ali. Um só. Segui caminho. Permaneci.

Outra esquina, outro sapato. Não o par do que eu tinha visto antes. Não. Outro sapato, totalmente diferente, em tudo mesmo, exceto pelo fato de também estar… Sozinho. Dois quarteirões à frente, de novo. Do outro lado da rua, também. Na pracinha onde eu brincava – os adultos tomando chope, discutindo o jogo do Flamengo. Na beira do Rio Maracanã. Na frente da farmácia triste, fantasma do mais deslumbrante cinema tijucano. Em Botafogo, à entrada lateral da minha antiga faculdade. No Centro, próximo ao cartório onde eu tirava documentos para me mudar…

Eu já não falava com as ruas. O Porto surgindo, à frente; o Rio me escapando, atrás… No alto?… Nem sabia. Uma qualquer coisa. Uma não resolução. Um sapato. Sempre um só. Sempre. Eu tento esquecer. Não posso. No Porto, eu ando por ruas novas. E volto a falar. Numa língua que é a mesma sendo outra, completamente outra.

  Não há, nestas ruas, sapatos sós. Mas eu ainda os vejo. Atrás, em torno, no alto, no Rio… Eu os vejo através do tempo, do espaço, de tudo. Me ocorre que, talvez, seja por isso mesmo. As pessoas todas não vêem as mesmas coisas. A vida, como um filme, em constante foco, desfoco, corte, edição. A lente procurando o que é inevitável ser visto. Porque sim. Porque… Só… Porquê! Eu olho pro alto. De lá para os meus pés, andando no Porto, falando com o Rio. Perdi um sapato! Eu. Eu mesma. Um. Só.

Como foi possível, isso? Como pude, eu, perder UM sapato, assim, no meio da estrada? Perder e seguir andando, como se nada tivesse acontecido?… Então eu não sabia que é insuportável caminhar assim? Um pé protegido, o outro não. Um lado alto, seguro; o outro exposto, mal conseguindo acompanhar. O corpo todo a se mover claudicante, instável, num esforço extenuante onde dez passos se tornam mil quilômetros… Do alto eu me vejo, sem saber. Como Deus, por meio segundo. Meio ser humano, pela vida inteira.

Eu paro. Tiro o sapato que sobrou. Eu, que jamais ando descalça. Mesmo em casa, mesmo no mais limpo dos assoalhos. Não ando. Minha irmã me liga contando ter machucado seriamente os pés. Eu digo a ela, de volta, de pronto:

“Estava descalça, não estava? É nisso que dá…”

É nisso que dá… Eu tiro o sapato assim mesmo. Caminho descalça. Machuco os pés. Seriamente. Machuco mesmo quando não machuco, apenas sinto. Para quem não sentia nada, afinal, qualquer sentido é dor. Ainda assim, melhor; infinitamente melhor do que o arrastar agonizante dos pés que não se falam. Um aqui, outro lá. Um no Porto, um no Rio. 

Eu opto por caminhar descalça. O sapato solitário aguarda. Eu falo com as ruas. Elas, comigo. Muitas, muitas coisas. Coisas de sentir. À frente, atrás, agora, nunca mais, para todo sempre. Coisas de procurar com os olhos fechados. De encontrar no lugar mais insuspeito – mais estupidamente óbvio. A lente que captura, e projeta, o inevitável. O sapato que espera no Porto, o sapato que perdi no Rio… 

2 Replies to “A Cidade De Um Sapato Só”

    1. Glauco! Que lindo ver você aqui! Ó, te mandei uma mensagem enorme via messenger. Saudade. Beijão. P.S: você já viu sapatos assim, sozinhos, no Rio? Me conte.

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