Love Letters

Situantionship. Essa, a nova palavrinha para definir uma forma de relacionamento amoroso. Acabei de saber. Minha amiga, Patrícia, me encaminhou uma matéria de jornal sobre o assunto.

Trata-se de algum tipo de “rolo” onde as pessoas estão mas não estão, gostam mas não gostam, nem vão nem ficam. Parece familiar? É porque é, mesmo. Essas palavras e estados de existência parecem estar por toda a parte agora. Aliás, já estavam há tempos. Eu é que estava por fora. Mas as amigas tem me posto a par da… situation. Elas precisam me atualizar. Não sei de nada. Eu estive casada. Ponto. Por vinte anos. Ponto. Estou solteira há três. Ponto. Simples assim. Simples assim?… Oops… 

Não, as amigas dizem. Não é simples assim. Não “lá fora”. Se situa, Flávia. A sua ingenuidade está dando bandeira – uma outra amiga, Verônica, me sinaliza isso, o sorriso solidário e compreensivo de quem conhece a minha natureza há quase três décadas. Você sempre teve uma certa inocência, ela diz. Eu e meu drinque vermelho não-alcóolico, (de mais ingredientes do que consigo lembrar agora) ficamos, metaforicamente, da mesma cor. Vergonha? Culpa? Regret? Raiva? Provavelmente um misto de tudo isso. Feito o tal drinque.

Ingenuidade… A palavra nojenta que tive que receber, aceitar, levar pra sessão de terapia e pro nível mais consciente possível do meu precioso cérebro. Ingenuidade. A vilã absoluta do meu momento. O monstro que surgiu para arranhar o rosto helênico da minha (negada, repudiada, porém… existente) vaidade intelectual. 

Meu sofisticado cérebro analítico e criativo, literário e filosófico… o mesmo que disseca as mil facetas de qualquer pessoa, em qualquer situação, e contempla a tudo de forma distanciada e desapaixonada… Este mesmo cérebro não poderia habitar nesta mesma pessoa que, de repente, não percebe que seu repertório afetivo está em extrema desconexão com… bom… quase todo mundo, aparentemente.

Minhas palavras não acham tradução em outras pessoas, as delas não fazem sentido pra mim. Eu digo amizade profunda, as pessoas dizem “contatinho”. Eu digo conexão de alma, as pessoas dizem P.A. Eu falo em amor, me explicam a diferença entre ficante e peguete. Sorry… WHAT? Eu vou pro Google. Ele sabe essas coisas todas aí! Meu Deus… em que planeta eu acabei de desembarcar? Qual é o meu problema?… Dislexia amorosa. Não. Pior. Desencaixe existencial severo. Se a minha vida fosse um desses filmes de multiverso, eu teria acabado de perceber que fui jogada no universo errado – e que o portal de retorno ao meu lugar de direito se fechou. The horror! Flavialand não existe aqui, Flavialanguage não é falada desde antes da morte do latim. É claro que eu tenho sofrido de insônia! Quem pode dormir com um barulho desses?

Outro dia, outra mesa, outras amigas e… as tais palavrinhas. Juliana e Waleska me falam sobre os aplicativos de relacionamentos, os P.As, os “ficantes”. Eu não entendo nada. Como funciona isso, gente? Como é isso de P.A?… Ficante? Casinho? O que determina esse tipo de classificação? É tipo alguém com quem você está dormindo, mas de quem você não gosta como ser humano? Com quem você não conversa? Conversa, Flávia, mas não sobre isso. Isso o quê? Ah, isso, o relacionamento. Não se conversa sobre levar adiante. Ué… Isso é coisa que precise ser conversada? Não acontece naturalmente quando você gosta de alguém? E, aliás, como é possível alguém passar tanto tempo com outro alguém, e ter intimidade física, se não gosta? Como? 

Mais uma mesa, de volta pra Patrícia. E pra Verônica. Entre explicações vocabulares e conselhos para organizar a vida afetiva, eu me dou conta de que preciso de consultoria especializada. Muitas sessões de terapia. Talvez uma “simpatia” básica. Ingenuidade, saia deste corpo que não te pertence. A Verônica ri, já se desculpando por estar rindo. Mas… gente… é pra rir mesmo. Eu também riria, se eu conseguisse. Não consigo. Não agora. Agora, preciso dar uns passos para trás, fazer uso do meu cérebro desapaixonado. As palavrinhas de pobreza afetiva agridem a minha sensibilidade. E seria fácil jogar nelas a culpa do meu desconforto interno. Mas… fato é que… 

A voz rasgada de Cássia Eller me vem aos ouvidos, do nada. Palavras, apenas. Palavras pequenas. Palavras. Feito o “eu te amo” protocolar. Feito o escrito, e logo esquecido, nome gravado na parte interna da aliança. Feito o papel assinado e registrado em cartório, sem significado algum. Feito as promessas escritas à mão, no bilhete, em desencontro com os sentimentos “inverbalizáveis”, ali, à espreita, só esperando serem acordados de um longo estado de “coma”, sem mais nem porquê. Feito tantas outras coisas que aguardam classificação, sem encontrar idioma.

Nesse misterioso jogo de esconde-esconde entre cada um de nós e nossos sentimentos, um almanaque inteiro de palavras querendo dizer nada se apresenta e um monte de nada que teima em ser tanta coisa se impõe… E, suddenly, penso que…

Talvez eu não seja, after all, a única pessoa deslocada em tempo, espaço e sentimento. Talvez eu apenas esteja algo solitária na disposição de admitir as palavras mais difíceis entre todas as palavras… 

Eu… Sinto. Mas eu não sei. E agora?…

Feliz Ferre-se Novo

If you’re gonna crash, crash decisively.

Paul Newman disse isso. Uma de suas filhas o citou, ao falar dele, numa série documental chamada The Last Movie Stars, que estou revendo esses dias. De tudo o que ele já tinha dito, essa, a frase da qual ela mais gosta. 

If you’re gonna crash, crash decisively. 

Crash é uma daquelas palavras sensacionais da língua de Shakespeare. Crash. Soa just right. Já me vem à mente aquela imagem fabulosa de um avião se espatifando, feito um meteoro proposital, no meio de um deserto de tédio silencioso, inconsciente, monocromático. O avião vem, se joga e, ao fazer isso, produz tudo o que não há ali… A cor, o som, a fúria.

Crash decisively. Crash, a palavra perfeita. Mas, vá lá… Traduzir é preciso. Em português, na forma “correta”, eu teria que dizer “bater” ou “colidir”… ou… melhor ainda: “se espatifar”. Ainda assim, esse correto não tem o tom vibrante de crash. Talvez a melhor tradução do sentimento, que é o que me importa, em linguagem ou em qualquer outra coisa, really, seria… Ferre-se!

Se você vai se ferrar, ferre-se decididamente. Ferre-se. Ferremo-nos. Agora, hoje, amanhã, em todo o ano de 2024, sempre. 

É esse, o meu desejo, então? To crash and burn? Obviamente, não. Eu sou, afinal, apenas humana. Meu desejo é… o voo perfeito. O voo no qual o vento passe por mim como se fôssemos um só. No qual eu sempre saiba onde ir, sem ter que pensar. Faça  TUDO sem ter pensar – e, por isso mesmo, sem falhar jamais. E cada movimento seja perfeito, harmônico, lindamente orquestrado. O voar sem lembrar que voa. Puro, ilimitado, infinito… êxtase. Esse, o meu desejo. 

Mas…

Se houver pane, turbulência, desorientação.

Se a altitude não for sustentável.

Se o ar estiver pesado e o horizonte, nublado.

Se eu não puder mais voar sem saber.

Se eu não puder mais gostar de estar voando.

Se, dor e morte supremas de todas as dores e mortes, eu já não puder me lembrar de nenhuma das razões que me fizeram alçar aquele voo, em primeiro lugar…

Então, nesse momento… Crash.

Ferre-se. Decididamente. 

I do… Nas duas línguas.

Quem é?

Quem é?

Eu ouvia essa pergunta ser feita pela Lourdes, funcionária dos meus avós da vida inteira, praticamente, toda vez que a campainha tocava, no apartamento da Conde de Bonfim, Tijuca, Rio de Janeiro, anos 80. 

Eram duas portas de entrada. Ambas com olho mágico. Mesmo assim, a pergunta:

Quem é?

E, aí, quem estivesse do outro lado respondia.

Sou eu.

Somos nós.

É Lorina.

É Paulo César.

É Dona Fulana, vizinha aqui do lado.

É o correio.

Sou eu. 

Quem?…

Abre logo essa porta, Lourdes!

Sou eu.

Eu quem?

Você sabe!

É quem é, hein?…

Sou eu! Flávia!

E a janelinha abria. E de lá, a vozinha…

Olha só que bonitinho. É ele.

Ela! Ela!

É ele, gente. Quem é o fofinho da vovó?…

Não sei quem é ele. Não sei quem é fofinho de ninguém. Eu sou eu. Flávia. 

Ela ria e ria. Abria a porta. Ficava radiante. Tanto mais exultante quanto mais severa fosse a minha expressão de impaciência.

Sim, eu ficava irada. Verdadeiramente. E ela sabia. E eu sabia que ela sabia. E essa era a brincadeira. A natureza do nosso relacionamento. Nossa manifestação de intimidade e afeto. 

Eu compreendia isso, de alguma forma, mesmo naquela idade. E achava engraçado. Mas achava, também, profundamente irritante. O afeto humano, afinal, nunca é uma coisa simples, reta, coerente. Eu amava e odiava aquela dinâmica em iguais proporções. 

Implicar comigo era o jeito da Lourdes me dizer que eu era singular para ela. Rejeitar a brincadeira era a minha forma de sinalizar que singularidade me importava. E que eu nunca aceitaria ser outra que não… Eu. Eu mesma. Ela. Uma menina. Chamada Flávia. A mesma pessoa. De um lado ou do outro daquela porta. 

A campainha toca.

Quem é?

É você? Você mesmo?

De um lado ou do outro?

Se não for, eu entendo.

Mas, por favor, nem toque.

A porta não vai abrir.

Carrossel

photo by: Flávia Ruiz

De repente, eu vejo um carrossel… Uma roda-gigante… Um… Ah… Qualquer brinquedo desses de parque. Os melhores. Os que giram. De repente. Assim. Eu vejo.

Como posso explicar?… 

Eu vejo coisas. Não com os olhos. Com todo o resto.  Todos os meus sentidos e mais alguns que não posso nomear. Não posso porque não sei. Eu vejo. Só vejo. E depois tento achar as palavras. Muitas vezes não há como. Não ainda. As tais palavras não existem. Então, eu as invento. Cada vez com menos vergonha. Ou nenhuma, mesmo. As palavras surgem. Eu as vejo. Eu as uso. Bom… Usamos. Eu a elas, elas a mim. É uma dança mútua. Voltemos a isso…

Eu vejo. Coisas. E, logo, eu sei. E, logo-logo, tenho que escrever sobre elas. Como explicar isso, em imagem-palavra? Funil. Sim. Esse funil, razão de tudo na minha existência. Eu, uma funiladora. Uma tradutora, algo ineficaz, mas muito dedicada, de imagens em palavras. 

Eu vejo um carrossel. Por que? Mais uma volta, damos nós… 

Porque sim. A resposta me vem pronta. Eu já sei. Sei, mas não acredito lá muito. Então preciso dar a volta interrogativa. E a volta experimentadora. E a volta confirmadora. Mais uma? Sim. Por que não? A volta repetidora. A volta praticadora. Talvez, talvez, talvez uma volta demonstradora, para se converter na volta final, a volta da certeza-certíssima-absoluta donde chego ao ponto da volta depois da última volta. A volta… lembradora.

Flávia, você já sabia isso antes. Eu me chamo assim, pelo nome. Como reprimenda. Sempre. Me chamar de Flávia é naturalmente uma punição. Quando eu sou estúpida – o que é muito, muito frequente. Mas já foi mais. Feito a vergonha. E tantas outras inutilidades. As voltas vão dando jeito nisso tudo. Sim, sim. Mas… Precisava de tantas? Afinal, eu já sabia. No primeiro instante. Na primeira visão. Bem… Como posso explicar?… De volta às voltas.

photo by: Flávia Ruiz

Eu vejo coisas. Eu as sei. E eu soube do carrossel. Da roda. De todas essas coisas. As melhores. As que giram. Mas precisei saber que sabia, de modo que tive que enunciar a pergunta e dar as tais voltas. Quantas fossem necessárias. Parecidas entre si. Quase iguais. Completamente diferentes. Lentas, enfadonhas, tristemente silenciosas. Velozes, eletrizantes, apaixonadamente ruidosas. Eu vou girando, girando… Eu vejo.

Um carrossel. E lá vou eu, mais uma vez. De volta ao começo. O começo é onde mesmo? Em qualquer lugar. Essa é a coisa de um carrossel. Qualquer ponto é o de partida. Qualquer, o de chegada. Ou nada. Meio de estrada. Saindo de onde já não lembro, indo até o ponto que ainda não sei. Por que? Porque sim. E eu já sabia disso. Antes. Sempre. Depois. Eternamente. Sabia, mas não acreditei lá muito, de modo que precisei de mais voltas. Porque sim. Eu giro e eu giro e eu giro e eu sinto e eu sei e eu…

Vejo.

Um carrossel. Ou uma roda. Os qualquer dessas coisas. As melhores. As que giram. Em círculos, sim. Mas para frente. Para dentro. Para fora. Para tudo. Para sempre. Agora. 

O Tempo do Tempo…

photo by: pixabay.com

Quanto tempo leva pro tempo passar? Tipo… Um ano. Quanto? Não me venha com aquele número não. Trezentos e sessenta e cinco. Isso se refere aos dias. Falo de outra coisa… Tempo. Quanto?…

Muito? Pouco? Nada? Toda a eternidade? E isso é bom ou ruim? De quais anos da vida a gente acaba lembrando mais? Tudo o que é muito bom parece ter uma velocidade enorme e o que é ruim, o contrário?… Ou não? Quando você diz “esse ano passou voando” é porque foi aquele ano sensacional da vida ou há nesse dizer, na verdade, uma sensação de desperdício, talvez?…

Eu me peguei pensando nisso nas últimas semanas… E meu embate com a questão foi se alastrando. Ele, o tempo, está em todas as coisas…

Quanto tempo leva, por exemplo, para aprender a andar de bicicleta? Para aprender qualquer coisa? Pra escrever um livro? Pra fazer um bolo? Pra se recuperar de uma indigestão? De uma desilusão? De uma… qualquer coisa? E pra botar o papo em dia com a amiga? Aliás, falando nisso… Quanto tempo leva pra uma amiga se tornar amiga? 

E, já que eu entrei (ui!) no campo dos afetos… Quanto tempo pra alguém se apaixonar? E, depois disso, quanto tempo pra perceber? Pra aceitar? Ué… Mas tem isso de “perceber”? De “aceitar”? Bom, depende. Eu aposto que pra alguém feito o Vinicius de Moraes, tinha não. Mas… Pra outras pessoas?… Oh, man! Tem sim. Se tem! Isso e outras cositas más. E depois tem… o depois! Quanto tempo pra “desamar”?… 

Voltemos ao grande Vinicius. Essa parte eu acho que ele devia saber responder também, in no time. Ou não, como diria Caetano. Vai ver ele só acumulava. Um amor on top of the other… Vai saber… Eu nunca tirei o devido tempo pra pensar em nada disso. Bom… não importa. Ao menos espero que não. Eu sempre posso abrir uma aba neste computador e procurar uma luz na sua música, na poesia… Não vai existir tempo nesse universo que me faça cansar disso.

“Eu sei que vou te amar. Por toda a minha vida, eu vou te amar.”

Vinícius, o poeta do “que seja infinito enquanto dure”, o homem de uma nova paixão a cada esquina, escreveu a sua música mais famosa usando justamente a medida de… tempo. Na maior extensão possível. Por toda a vida. Ou, num outro verso, a própria eternidade… “A eterna desventura de viver à espera de viver ao lado teu”. Quanto tempo dura isso? Não a eternidade, claro. Mas a crença nela… A crença, sobretudo, me interessa. Você já chegou a ter isso? Por um segundo sequer? Eu tive?…

Chega. Não quero mais pensar em Vinicius. O ano está acabando e o poetinha começa a me chatear. Inveja é uma boa bosta! Ele viveu, bebeu, amou, escreveu, fez insanidades, e o diabo a quatro, mil vezes melhor do que eu jamais vou conseguir. Ok…  Vá lá… Acho que consigo bater o sujeito no quesito longevidade. Um dia. Tem alguma coisa lindamente errada com a minha genética, aparentemente. Eu fico mais saudável e com muito mais energia a cada ano que passa… para frente. E mais irritada ao olhar… para trás. A estupidez da juventude “prescreve” com o tempo? Se sim, quanto tempo ainda leva?… Se eu enfiar mais tempo bem vivido nos próximos tempos, isso compensa o tempo esnobado enquanto eu não via o tempo passar?

Eu desisto da questão. Vou dormir. Esse, um tempo muito bem usado. No sono, a conversa íntima entre você e você mesmo. A liberação dos desejos ocultos. A liberação de tudo. O voo de todos os sentidos. A ruptura de todas as amarras de espaço, de lógica, de… tempo. Quanto para uma noite bem dormida? Oito horas. Que se pareçam com alguns segundos. Mas te deem a sensação da eternidade – quando feliz. E dessa vez é. Eu sonho com o poetinha. Ele bebe água. Eu, vinho do Porto. Depois, um uisquinho. Em algum momento, um espumante. Vou ficando bem doida. O poetinha, só na água, sóbrio toda a vida, achando muita graça do meu pequeno porre. Só em sonho isso seria possível. Mas quem se importa? Ele me pergunta como estou de tempo.

“Vinicius… Sei não. Não tô mais enxergando o meu relógio”. 

Ele ri. Encosta pra trás numa cadeira de balanço… Ele sabe. Do tempo. Da vida. Da arte. Do amor. De tudo. Sabe e vai me dizer. Vai dizer. Vai…

Eu acordo. Já não estou mais com Vinicius. Nem de porre. Eu enxergo o relógio perfeitamente bem. E eu lembro do sonho. Lembro, mas não entendo… Quanto tempo eu tenho, afinal? Quanto tempo eu quero? Quanto tempo é preciso? Quanto?…

Tempo Suficiente

photo by: pixabay.com/StockSnap

Como eu vim parar aqui?

Esse, o pensamento que me veio enquanto eu tirava a maquiagem, diante do espelho do banheiro. Aqui no Porto. Agora. E lá longe, no Rio. E de volta.

Você pode se ver mudando se olhar bem fixo e fundo nos próprios olhos, por tempo suficiente. Sabia? Tempo suficiente… Quanto seria isso? Não me pergunte.

Anos. Meses. Dias. Horas. Minutos. Segundos. Tempos, tempos, tempos.

Eu tinha treze. Anos. E alguns minutos, que era sempre só o que eu podia ter. E mesmo assim, muito mal e mal. No único silêncio possível, o do banheiro, eu parei. Olhos nos olhos, diante do espelho, por tempo suficiente. 

E… eu mudei. Aos poucos. E de uma vez só. Num lapso de segundo. Susto. Quem era aquela? Como ela foi parar ali? Que coisa mais estranha. Medo. Bom… Fascínio, também. Curiosidade. Mas muito, muito medo. Medo demais. O que fazer?… Não tem problema. Um passo atrás, o olhar em outra coisa. Qualquer coisa. Ainda que  em você mesma, mas só o rosto. Ou mesmo os olhos, mas por fora. Só por fora. Pronto. É, de novo, só um espelho. E você é só você mesma, feito antes. Se afaste do espelho, saia do banheiro. No meio de todo mundo, por tempo suficiente, você até esquece.

Como eu vim parar aqui?

Eu pego o celular. E mando isso por escrito, em mensagem, à minha irmã, com quem eu tinha falado ao telefone pouco antes, feito todo dia, feito sempre. Há tempos, e tempos e tempos. Nunca, o suficiente. Eu podia ter ligado de novo. Tenho evitado as tais mensagens, em geral. Acaba me parecendo distante, limitado. Mas escolhi assim dessa vez. Eu tinha sido excessivamente próxima falando. E existem verdades que demandam alguma distância. Perspectiva. A palavra falada, para o presente. A escrita, para o infinito.

Aconteceu alguma coisa? Ela pergunta. 

Não. Não. Eu respondo. Só me veio isso, de repente, agora. De vez em quando vem. Um choque. Um susto. Sabe como? Uma realização de que minha vida não está, absolutamente, como eu tinha planejado. Você sente isso?

Sim, ela sente. O tempo todo. Ela acha que a maioria das pessoas, depois dos quarenta, sente. As que não, ou tiveram muita sorte ou não sabem. A ignorância é uma benção – minha irmã completa, os emojis chorando de rir, espalhados pela tela. Eu rio também. Muito. Porque a coisa toda é hilária, feito só as coisas mais tristes sabem ser. Eu rio e respondo.

Discordo. Eu digo. Não, escrevo. Discordo. Prefiro sofrer. Prefiro… Eu digo a ela o que eu prefiro, em termos muito reais e bruscos e engraçados e… bom…deselegantes demais pra esta residência aqui… Mas eu digo a ela. Ainda lá. Sentada, agora, mas ainda lá. Diante do espelho do banheiro. Ainda o lugar onde o silêncio é mais possível, mais duradouro. Eu digo a ela e olho, fundo, fundo. Por tempo suficiente. Onde é possível se ver mudando. Prefiro sofrer, respondo, de pronto. E… É verdade. Tão verdade que eu rio. É a mais pura verdade. Desde quando?… 

Como eu vim parar aqui?

Aos treze. Aos vinte. Vinte e cinco. Trinta. Trinta e três. Trinta e oito. Quarenta e dois. Quarenta e mais. Quantos a mais? Muitos. Todos. Eu paro e me olho. Me vejo mudando. Sigo olhando. Já não temo mais. Desde quando?… Não sei. Não importa. Agora é todo o tempo que há…

A Coisa Antes da Coisa Antes da Coisa Antes…

Gal morreu. A mensagem pulou na tela. Era da minha prima. Mas eu estava falando com outra pessoa. Falando sobre não falar. Não. Isso ia ser depois. Mas já estava pensando. Antes. Agora era sobre um cansaço enorme. Eu não tinha dormido. Falar sobre não falar era meu assunto. Mas minha prima apareceu. Gal morreu.

Oi? Como assim? Falar sobre não falar era coisa de antes, mas ficaria pra depois. Abri o jornal. Ali, a notícia. Sim, Gal morreu… Antes, horas antes. Mais horas, na verdade, porque o fuso me faz dessas… Tenho sempre mais horas antes das horas… E nelas, tinha acabado de ver Gal. Cantando “London London”. Nem sabia por quê. Não importava. Eu estava no YouTube. Cliquei. Parei pra ver e ouvir Gal. “I’m wandering round and round, nowhere to go…”. 

Round and round… London london… Falar não falar… A circularidade de todas as coisas me irrita profundamente. E me fascina. É inevitável. É exaustivo. Pra mim, é. Eu, a que teima girar o disco ao contrário já sabendo que estraga a música. A dança. A vida. A coisa toda. Mas mesmo assim. Deixa o disco rodar e tocar direitinho, Flávia. Do início ao fim. Faz favor?…

A campainha toca. Antes. Muito. Quase trinta anos antes. É natal. Minha tia e minha avó. Eu corro pra porta. Ooooooiiiii. Eu não estou igual à Gal Costa? Está! Fiquei toda prosa. Eu, de branco, de alcinha e renda, o cabelão preto que eu tinha passado o dia todo trançando molhado pra soltar tudo depois e fazer aquele onduladão cheio de volume. Eu, a própria Gal. Por uma noite. Era o máximo! Agora faz o batom vermelho também, Flávia. Falta o batom… Não, não… Falta tudo, gente! Gal é Gal. A boca, a voz, o ímpeto, a coragem, o sei lá o quê que a pessoa exala que toma qualquer espaço por inteiro e ainda sai transbordando. Duvido, duvido ela fosse das que gira disco ao contrário. Duvido ela fosse de falar sobre não falar…

“Eu só faço o que eu quero”, eu a vejo dizer no Roda Viva. Antes. Depois. Agora. Tenho certeza que sim. “Ela é tão bonita que, na certa, eles a ressuscitarão”. Gal morreu. Mas eu a quero viva. Pra tudo. Pra todos. Ok… Mais pra mim mesma. Pra me dar umas aulas. Feito só os grandes podem dar. O que ela diria se fosse tipo uma amiga e pudesse me ver agora? Eu dou play. Ela responde. “Sua estupidez não lhe deixar ver”… Touché, Gal. Touché. Estupidez. O disco segue girando. Que coisa linda. Tudo. A arte, essa coisa mágica que toma formas, que parece sempre ser feita só pra nós. Exclusivamente. Sob medida. A arte, que vai te achar no dia certo, na hora exata.

“Você precisa aprender o que eu sei…”. Preciso mesmo. E tem dias que parece que vou. Mas acabo não indo. Não dura. Murcha. Feito meu cabelão cheio de volume “fake”. Feito o batom vermelho que não sei usar. 

Play. Deixa o disco tocar, Flávia! Pra frente. Até o final. Play. Gal menina, Gal madura. Cabelo curto, cabelo longo. Vestida, desnuda. Linda, linda, linda. Melódica. Frenética. Alegre. Carnavalesca. Brasil. Tão Brasil. Antes. Agora. Sempre. Vai ter que dar, vai ter que dar. O Balancê, balancê. Entra na roda, morena pra ver. Ao fundo do fim. De volta ao começo. É preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte. 

Ai ai… Play. Mais um. E sair pela porta, que tenho hora. Gal e sua aparição me encaram. Antes. Ontem. No cinema, entre os Doces Bárbaros. Do outro lado do mundo. Aqui, no Porto. O filme acaba. Nós aplaudimos. Porque ela está ali. Forte. Doce. Gal. Se ela fosse tipo minha amiga e me visse agora, depois da estupidez, o que ela diria? Play. O último. Antes da coisa que vem antes da coisa, feito todas as coisas são. Circulares. Exaustivas. Perfeitas. Antes. Agora. O que ela diz? Não se afobe não, que nada é pra já. Baby, eu sei que é assim… 

De Propósito

photo by: pixabay.com

A voz de Milton Nascimento invade a casa que ainda não é. O espaço, ao que virá. O caminho de volta, ao que já foi. 

Tudo cheira à morte. Vida. Amor. Sangue. Mistério. Tudo, uma coisa só. Tudo, em opostos inconciliáveis. É preciso separar. Escolher. Eliminar. Absorver. Dessa vez como nunca antes, porque… de propósito. Milton, a voz da eternidade, sabe todas as coisas. Eu não. Não sei. Nada. Menos que nada. Dessa vez, de propósito. 

Faz diferença, isso? Faz. Toda. 

“E assim, chegar e partir são só dois lados da mesma viagem…”

São só dois lados. Sim. 

Faz diferença? Faz. Toda.

Eu me visto. Eu me dispo. As roupas que vão ao chão. As que cobrem uma nudez sem pressa, sem calor, sem frio, sem pudor. Como nunca antes. Um tanto faz específico, intransigente, supremo. O que já não serve é muito e precisa ir. Então, eu separo as roupas. As cartas. Os documentos. O passaporte. 

E penso. Na minha avó. Falando de amor. Antes, muito antes… enquanto eu, agora, silencio o amor em mim mesma. Dessa vez, de propósito. E minha avó, antes?… Ela falava, eu ouvia. Por acidente.

Minha filha, os casamentos já não duram porque todo mundo é independente. Ninguém mais quer aturar nada.

Ela dizia isso como se fosse uma coisa negativa. Pra ela era mesmo, ora.

Minha filha, o problema da sua irmã é ter roupa demais. No meu tempo a gente tinha a roupa de casa, o uniforme da escola, uma roupa de festa. E só.

Minha filha, agora todo mundo faz dieta e vai pra academia. Todo mundo vive com medo de engordar. No meu tempo, a gente tinha que andar, pegar no pesado e não tinha essas facilidades, essas comidas prontas… Você queria um bolo? Tinha que fazer. Pronto. Pesei a mesma coisa minha vida toda. Nunca nem pensei nisso.

Verdade. Ela, sua cinturinha de pilão e suas pernas fabulosas nunca souberam o que era uma bicicleta ergométrica e, definitivamente, nunca ouviram a palavra “pilates”.

Ter escolhas. Esse, o problema. Na ausência de abundância e variedade, a falta de drama. Noves fora, vejamos… Na falta de opções, a “felicidade”. 

Ela dizia isso como se fosse uma coisa positiva. Pra ela era mesmo, ora.

A vida sem opções lhe foi gentil. O amor lhe sorriu. O conforto. A abundância. A boa saúde. A casa. A vida. A cinturinha de pilão e as pernas fabulosas. Por acidente. Tudo, tudo. Até que… Não mais. 

Estou cansada. Não sei como vim parar aqui. Essa casa, esse corpo, essa vida… Nada, eu reconheço. Como?… Ela diz, sem palavras. Provavelmente sem pensamentos, tampouco. Por acidente, tudo chegou. Por acaso, se despediu.

“O trem que chega é o mesmo trem da partida. A hora do encontro é também despedida.  A plataforma dessa estação é a vida…” 

Eu digo essas coisas à minha avó. Ela não me escuta. A conversa acontece na minha memória, por acidente. E nesta semi-ficção, de propósito. Na vida real, frente a frente, nós duas, ainda respirando o ar no mesmo planeta, a conversa acontece?… Não sei. Acredito que não. Há palavras que não devem ser ditas por acidente. Mas silenciadas, por amor. De propósito. 

About… Uniqueness

photo by: Flávia Ruiz

Paradox. 

If I had to choose a word for life today, this would be it.

Paradox.

For everything that is alive seems to be bound to this inescapable – and so very elusive -balance between two (apparently) opposite extremes. The fact that we must not run around in fear of losing opportunities and the truth about… Well… Uniqueness.

And there it is… Paradox. Yet… Somewhere in the middle, there seems to be a sweet spot, a  form of perfection, a genius, per se, that keeps escaping me – for I am just one more limited, imperfect human searching for the infinite while I must, also, conform to limitations.

And as I think upon that and prepare to go out into to the world and live the best day I can menage, I look at this photo I took a year ago and realize how it almost didn’t happen… And how it (probably) never will… again. 

The way the sun came down on that statue (my favorite one, the one that represents autumn), like a divine shower of light. The angles. The visual poetry of it… Breathtaking. I took one look at that scene and it hit me…

This is one of those moments. I must seize it. Run, Flávia, run – I told myself. Because I had only a tiny fraction of time. An extremely narrow window of opportunity that would close within seconds. And so, in that moment, I was able to listen. To follow through. To give my best shot despite the fear of it. Yes, fear! Because… Let’s be very honest for a second… What is more painful than not having what you want?… 

I think you know the answer to that. Yes… What is more painful, a lot more is…

To almost have it!

To allow yourself to believe that the thing you want – or see or desire or love… that vision of a dreamlike version of your own universe… whatever that might look like to you in a moment of your life experience… To allow yourself to go for it, nearly touch it and… then… feel it drifting away from you… There are no words to describe, fully, the terror this  notion can impose on us – though, mostly, in such a unconscious way that we are able, for the majority of time, to go about our lives disguising this fear as “laziness”, “caution” , “procrastination” or other, less dramatic, feelings. I know how that goes… I have done it myself. Many, many times.

But not on that day. 

On that day, for some reason, I was more awake, faster, braver.

On that day, I exposed myself to wanting really bad to capture that heavenly image on camera, so that I could always remember what it felt like. And so I ran. I angled. I took a shot. And… I got it!

A couple of seconds later, there was no light to be seen there. The window had closed.

It’s been precisely one year since I took this photo. I still go into that park almost everyday. At that same time. And I always look at that very same spot to see if the light will come again. 

It hasn’t yet…

It was… Unique.

Fui…

photo by: pixabay.com

Homem morre ao jogar o próprio carro de uma ponte que já não existia mais, há anos, guiado pelo GPS.

Essa foi mais ou menos a manchete de uma notícia que li hoje cedo. Não foi a primeira. Não vai ser a última. 

Tem também a história da pessoa que morre fazendo uma selfie de situação encenada.

A moça que se apaixona por um homem que não existe, num site de relacionamentos.

O homem que mantém um caso de amor estritamente virtual, há mais de quinze anos.

A mulher que inventa um negócio fictício on-line (sem golpe financeiro, veja bem… Só pela fantasia mesmo) com direito a reuniões virtuais e contratos assinados via correio. 

Substitutos. Eles sempre existiram. Que ótimo, aliás. Nós, humanos, afinal, somos bem frágeis e patéticos em muita coisa. Mas, boy oh boy, como nós somos bons em nos adaptar. Em criar soluções e “muletas” para contornar adversidades, impedimentos temporários. Em… bom… inventar os tais dos “substitutos”. 

Pense férias de verão no campo, com a família… Nem muito tempo atrás, não. Três, quatro décadas, no máximo. Já tinha um bocado de tecnologia. Luz elétrica, mesmo na roça das roças. Rádio. Televisão. Mesmo assim… 

Fazendo sol, a gente passava o dia fora. Pique-esconde no quintal, corridas de bicicleta pelas ruas de terra batida, caminhadas intermináveis só pra tomar uma casquinha de sorvete ou comprar um gibi, piscina na casa da tia uns quarteirões pra baixo e depois voltar todo mundo pingando água pelo caminho – ou banho de mangueira mesmo quando não tinha piscina nenhuma.

Mesmo à noite, a gente saía. Em grupo. Minha avó, as tias, os primos todos. Um ponto de luz ou outro dos postes, a luz da lua, linda linda… Os vaga-lumes, o cheiro de mato, o barulho dos bichos noturnos e… nossas vozes. Todos juntos, a gente ia conversando, rindo, falando besteira, discutindo também, às vezes. Claro.

Se chovia?… Substitutos. Bem legais. Jogos de cartas. Pipoca. Jogos de tabuleiro. Pipoca.  Adedanha. Pipoca. Pregação de peça nos inocentes. Pipoca. No fim da noite, algum filme do Spielberg daqueles bem apavorantes, que sempre passavam na televisão. E, claro… Pipoca. 

Acabou a luz?! Mais alguns substitutos, com o auxílio de um lampião e algumas velas. A gente até sentia falta da TV, mas o climão, as sombras, o ar de mistério compensavam largamente. De vez em quando era bom! Se tivesse raios e trovões ao fundo, então… Uau. Era como um dos filmes do Spielberg bem ali, na nossa vida real. A gente fazia uma quase uma realidade paralela, viajava na imaginação, criava personagens, aproveitava também pra sonhar com o paquerinha que estava longe e “trabalhar” na trocação de cartas e bilhetes de amor.

A chuva uma hora passava. A noite virava dia, mais uma vez. As férias chegavam ao fim. A fase de paquera fantasiosa e  das cartas evoluía para o dançar juntinho na festa, andar de mãos dadas, pegar um cinema e dar o primeiro beijo no escuro, uns outros tantos no claro mesmo, ficar pendurada no telefone e, um dia, perceber que não era essa coca-cola toda, terminar tudo e ir dormir chorando pra depois acordar pálida e inchada. Jurar que nunca mais. E começar tudo de novo. 

O sol, a chuva. O dia, a noite. O período de aulas, o de férias. O real, o imaginário. O concreto, o substituto. A dança, caótica, sim; mas também harmoniosa, do seu próprio jeito, entre todos os elementos que iam tecendo uma coisa chamada… vida. Sem que precisássemos sequer nos dar conta disso, sem que fosse uma preocupação mas, apenas, um fluxo – onde cada coisa tinha seu lugar e sua hora. Ciclos. Natureza. Multiplicidade. Experiências. Riqueza.

E aí… Alguma coisa aconteceu… Os substitutos, as muletas, os artifícios foram se multiplicando. Ganhando espaço. Muito. Muito. Muito. Demais. A dança… desandou.

Quando foi que a muleta começou a parecer melhor do que as pernas? 

Que sonhar deixou de ser apenas a etapa inicial e virou a história inteira?

Que ser um personagem numa tela tomou o lugar da busca por uma existência completa e plena, no mundo real?

Que o que te diz a voz robótica do GPS te parece mais factível do que o que dizem os seus próprios olhos e sentidos? 

Quando foi, enfim, que abrimos mão de ser matéria e, surprise-surprise, ao fazer isso parecemos ter perdido… o espírito?…

Mãos ao volante, olhos na estrada, meu verdadeiro GPS me dá um alerta… A ponte não existe. Não está lá. Não vai me ligar a coisa nenhuma. 

Não, obrigada. Eu dou meia volta. Desligo tudo. Bato a porta. Estou fora. Minhas pernas, meus olhos, meu coração, meu espírito agradecem. Fui.